Entrevista a Dom Edson DAMIAN

Olá, Dom Edson.

Conforme conversamos mais cedo, por telefone, envio abaixo as questões que pensei para a nossa entrevista. Nós vamos publicá-la na quarta-feira antes da Páscoa, e ela ficará no ar até o domingo de Páscoa.

Não há limites de páginas, então, fique à vontade para responder tudo que achar pertinente. O senhor acha que é possível devolver as respostas até sexta-feira ou segunda?

Obrigada, novamente, pela gentileza.
Por favor, confirme o recebimento das questões. Abraço.

Perguntas:

1.- Quando o senhor foi nomeado bispo em São Gabriel da Cachoeira, disse que esse seria o “desafio imenso da última etapa” da sua vida. Como tem sido viver esse desafio diariamente?

Confesso que tive dúvidas e medo quando foi chamado para ser bispo da Igreja do Rio Negro. Fui tentado a não aceitar. Depois de três dias de solidão e oração com monges cartuxos no Mosteiro de Santa Maria, RS, minha diocese de origem, dois motivos me levaram a dizer sim. Dei-me conta de que tudo o que sou recebi de Deus e da Igreja, minha mãe. Deus sempre se excedeu em generosidade e misericórdia para comigo. A Igreja me acolheu desde os 12 anos, me formou e me confiou o ministério presbiteral. Recusar o chamado seria uma ingratidão a Deus é à Igreja. Além disso, pesou muito a imensa dívida social que temos com os Povos Indígenas, vítimas dos cruéis massacres, genocídios e escravidão perpetrados pelos brancos civilizados e cristãos. Inspirado no lema: “Com Jesus amar e servir” (os Povos Indígenas) foi ordenado bispo no dia 24 de maio de 2009, em São Gabriel da Cachoeira. Realizar esta celebração no meio de uma multidão de parentes indígenas criou empatia, proximidade e confiança mútua desde o início. Eles me acolheram com danças ao som de flautas. O pajé Mário me transmitiu a força para conduzir o povo, antes da imposição das mãos dos bispos. A seguir, colocaram-me o cocar, a cruz de pau Brasil e me entregaram o bastão de pajé.

“O desafio imenso da última etapa de minha vida” está sendo uma graça imerecida. Quando visito as comunidades das aldeias distantes ao longo dos rios, sempre alguém saúda como “excelência, nosso pastor”. Costumo retribuir dizendo que excelências são eles que vivem tão isolados, abandonados pelo poder público, expostos às intempéries, dispondo apenas do mínimo indispensável para sobrevier. Mesmo assim, sabem partilhar tudo o que possuem na hora da “quinhapira” após as celebrações, num clima de descontração e grande alegria. Neste momentos cantam: “Os cristãos tinham tudo em comum”, “Pão em todas as mesas”.

Com a exceção de uma paróquia onde a metade das comunidades são evangélicas, as demais paróquias do interior são todas católicas. Cada uma tem o seu catequista que preside o culto dominical e prepara para os sacramentos. Os padres procuram realizar quatro visitas por ano. Todos gostam muito de fazer a confissão. A maioria começa dizendo: “vou confessar na minha língua”. E soltam o verbo. Na visita “ad limina”, quando relatei este fato ao Papa Bento XVI, ele logo me perguntou: “E você entende todas as línguas?” Impossível, respondi, pois são dezoito e muito diferentes uma da outra. Mas, como foi Deus Pai quem criou todos os povos e línguas e é Ele quem perdoa, compete a Ele entender-se com seus índios!

Muitas comunidades costumam reunir-se todas as manhãs para escutar o Evangelho do dia, rezar e cantar. Em seguida tomam o mingau e partem para os trabalhos na roça. As crianças ficam aos cuidados das pessoas idosas e vão à escola.

 

2.- Pode nos dar um panorama geral da região onde vive e atua? Quais são as dificuldades de viver numa área de fronteira, especialmente aí, onde circula o narcotráfico?

A Diocese de São Gabriel da Cachoeira está situada ao noroeste no Estado do Amazonas. Abrange os municípios de Barcelos, Santa Isabel do Rio Negro e São Gabriel da Cachoeira. Ocupa uma área de 293.000Km², maior que o estado de São Paulo ou equivalente à Itália, sem a Sicilia.

Atravessada em toda a sua extensão pelo Rio Negro e seus numerosos afluentes, é uma região coberta por florestas equatoriais. Limita-se ao norte com a Colômbia e Venezuela, a leste com Manaus, ao sul com os municípios de Coari e Tefé. Pelos contornos geográficos, a região é conhecida com “Cabeça do Cachorro”.

Aproximadamente 95% da população é constituída por Povos Indígenas. Ainda existem 23 etnias e são faladas 18 línguas. Na cidade de São Gabriel, além do português, outras três línguas são consideradas oficiais: Tukano, Baniwa e Nheengatu ou Língua Geral.

A Diocese está dividida em 10 paróquias. Subindo o Rio Negro, encontra-se a paróquia de Nossa Senhora da Conceição no município de Barcelos. A segir, situa-se a paróquia de Santa Isabel do Rio Negro. Chegando em São Gabriel da Cachoeira, há duas paróquias: Paróquia São Gabriel Arcanjo, sede da Catedral, e a paróquia São João Bosco que congrega várias vilas.

No interior da Diocese estão localizadas seis paróquias. No Triângulo da etnia Tukana encontram-se a Paróquia de São João Bosco no rio Tiquié, distrito de Pari Cachoeira, a paróquia do Sagrado Coração de Jesus no Rio Uaupés, no distrito de Taraquá e a paróquia de São Miguel Arcanjo, no distrito de Yauaretê, no rio Uaupés

Ao longo do Rio Negro encontra-se a paróquia São Sebastião, no distrito de Cucuí, na fronteira com a Colômbia e a Venezuela. A paróquia Nossa Senhora da Assunção está espalhada ao longo do rio Içana e seus afluentes. Por fim, a paróquia Nossa Senhora de Lourdes no distrito de Maturacá, onde vivem os índios Yanomami. Nesta região encontra-se o Pico da Neblina com 3.014ms, o ponto mais elevado do Brasil. Apesar de ser difícil o acesso, ainda sonho escalá-lo um dia.

As paróquias são atendidas por 18 presbíteros: 10 salesianos de Dom Bosco, SDB; 02 Missionários do Sagrado Coração, MSC; 02 padres diocesanos indígenas; 04 Fidei Donum de várias dioceses que trabalham com tempo determinado.

Merece destaque a presença de aproximadamente 30 irmãs Filhas de Maria Auxiliadora, 12 das quais provenientes de várias etnias indígenas da região. Há também duas Irmãs e três noviças Catequistas Franciscanas. Estas missionárias dedicam-se à educação da juventude nas escolas, à pastoral da saúde e colaboram como animadoras de várias pastorais. Lembro com gratidão a Ir. Irene Oliveira de Mello com 93 anos e há 68 anos trabalhando nas comunidades do Rio Negro. Atualmente toma conta da cozinha da comunidade que recebe jovens indígenas que fazem discernimento para a vida religiosa.

Treze seminaristas indígenas de diferentes etnias estudam no Seminário Arquidiocesano de Manaus: nove na filosofia e quatro na teologia. São a esperança de uma Igreja autóctone com rosto indígena. Já tive a graça de conferir a ordenação sacerdotal a dois padres diocesanos e três salesianos. Todos indígenas de diferentes etnias.

A única via de comunicação e transporte são os rios. Devido às longas distâncias, muitas comunidades são visitadas pelos padres somente uma ou duas vezes por ano. Durante o ano, são lideranças leigas que coordenam as pastorais, dão a catequese e presidem os cultos dominicais. Recebem formação e subsídios tanto da diocese como da paróquia.

Com a demarcação e homologação de mais de 90% das terras de São Gabriel, os Povos Indígenas estão recuperando também a sua identidade e sua cultura. Estão nascendo mais crianças. O fato de 60% da população se encontrar estudando, do ensino fundamental ao universitário, revela a alta faixa etária de pessoas com menos de 30 anos.

Bem diversa, porém, é a situação dos indígenas e caboclos ribeirinhos de Barcelos (122.000 Km quadrados!) e Santa Isabel. Cada vez que alguma equipe da FUNAI anda por lá para iniciar o processo da demarcação das terras indígenas, as autoridades locais provocam uma verdadeira guerra. E o que esperar do atual Congresso Nacional? De acordo com estudo do Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (Diap), o Congresso Nacional, é conservador socialmente, atrasado do ponto de vista dos direitos humanos, temerário em questões ambientais, liberal economicamente e pulverizado partidariamente. E se forem aprovadas a PEC 215/2000 e a PLC 277/2012 os direitos dos indígenas aprovados a duras penas na Constituição de 1988 irão todos para o brejo. Não surpreende que dos quase 50 deputados listados na Comissão Especial que analisará a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 215/2000, pelo menos 20 tiveram suas campanhas eleitorais financiadas por grandes empresas do agronegócio, mineração, energia, madeireiras e bancos. A PEC transfere do governo federal para o Congresso o poder de demarcar Terras Indígenas, titular áreas quilombolas e criar Unidades de Conservação (UCs). Na prática, se aprovado, o projeto deve significar a paralisação definitiva da oficialização dessas áreas protegidas.

O narcotráfico existe principalmente na fronteira com a Colômbia. O exército está presente na região mais de 2000 soldados e vigia as fronteiras através de 07 PEFs – Pelotões Especiais de Fronteira. Acontece que os índios transitam pela floresta através de igarapés e varadouros e conseguem passar as drogas principalmente durante a noite.

 

3.- Como é trabalhar na diocese mais isolada do Brasil? Quais são as dificuldades e aprendizados de estar atuando na Amazônia?

São Gabriel é a diocese mais isolada, mais indígena e mais pobre do Brasil. De Manaus, subindo pelo Rio Negro, a distância é de 1200 quilômetros. Há dois barcos semanais, às terças e sextas-feiras. Partem tanto de Manaus como de São Gabriel. A lancha ou expresso demora 24 hs, com breves paradas em Barcelos e Santa Isabel. O barco maior, onde cada um se acomoda na sua própria rede, leva dois dias e meio e até três. Percorre-se as regiões mais belas e melhor preservadas da Amazônia. Calcula-se que menos de 3% da mata foi derrubada. Por enquanto, estamos livres da destruição das madeireiras e do agronegócio.

Engana-se quem pensa que as terras desta região são férteis e produtivas. A maior parte delas são arenosas e áridas. Necessitariam de vários corretivos e insumos para produzir. Como quase tudo procede de Manaus, o transporte encarece tanto os produtos que não compensa plantá-los aqui. Os missionários tentaram introduzir o plantio de arroz, milho, feijão, mas não obtiveram resultado. O que garante a sobrevivência dos indígenas é o cultivo da mandioca. Quando cheguei aqui, conheci a Sra Manoela Carneiro da Cunha, considerada a mãe da antropologia indígena. Contou-me que agrônomos do ISA – Instituto Sócio Ambiental, atuando na área desde 1990, descobriam que os índios conhecem aproximadamente 300 espécies de mandioca. Estavam fazendo um banco de dados para preservar este cultivo milenar que fornece o pão nosso de cada dia.

Quem planta e cultiva a roça é a mulher. Aqui há um dado muito interessante. Os casamentos são inter-étnicos, isto é, um índio sempre casa com uma mulher de outra etnia. Ao deixar sua aldeia de origem, ela leva consigo, como parte importante do seu enxoval, as manivas (as ramas) das espécies de mandioca que ela aprendeu cultivar com sua mãe e avó. Assim as espécies vão se multiplicando.

Da mandioca fazem a farinha, o beiju, a tapioca, o mingau, a maniquera, o arubé, o caxiri, a maçoca, o tucupi, o curadá, o bejuchique e outros alimentos de acordo com a criatividade das mulheres. Em 2010, o IPHAN – Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – outorgou à roça o Médio e Alto Rio Negro o merecido título de Patrimônio Imaterial do Brasil.

É claro que os derivados da mandioca se tornam mais saborosos quando acompanhados com pescados: quinhapira (quinha-pimenta, pira-peixe), mujeca, cudiari ou com carne de caça: anta, paca, cotia, tatu, macaco. etc. Nas visitas pastorais passo semanas inteiras convivendo e me alimentando com os parentes indígenas. E dormindo na rede que sempre me acompanha.

Nas horas intermináveis sentado na “voadeira” para visitar as comunidades ribeirinhas consigo ler livros inteiros. Quando estou na sede, sobra-me pouco tempo, pois os índios gostam de retribuir a visita e me procuram muito. Quando não me encontram e informam que estou em alguma atividade fora da Diocese, dizem: “ O bispo vive passeando” . Quando ficam sabendo que estou visitando uma paróquia se conformam um pouco: “Pelo menos está visitando nossos parentes”!

 

4.- Em que consiste a sua ação missionária? O que o senhor entende por “missão” e como é fazer missão numa região tão plural, onde há 22 etnias indígenas diferentes?

Os primeiros missionários que chegaram ao Rio Negro, em 1690, foram os jesuítas. Depois viram os carmelitas e os franciscanos. Dom Frederico Costa, segundo bispo de Manaus, empreendeu em 1907 uma memorável viagem pelos rios Negro e Uaupés. Constatou a condição de abandono material e espiritual em que vivia a população. Ouviu o clamor dos índios: “Salva-nos dos comerciantes e dos policiais”- como ele narra na Carta Pastoral escrita pouco depois. Do seu apelo ao Papa Pio X resultou a criação da Prefeitura Apostólica, confiada á Congregação Salesiana, em 1914. A partir de 1915, coube aos filhos de Dom Bosco iniciar a construção de igrejas, escolas, pequenos hospitais, empreendimento que “exigiu muito suor e muito dinheiro”, como preconizou Pio X ao enviar os primeiros missionários. No dia 24 de maio deste ano celebraremos o centenário da chegada dos Salesianos a São Gabriel da Cachoeira. Realizaram uma obra extraordinária. Praticamente todos os prédios hoje existentes foram construídos por eles. Poucos anos depois vieram também as Filhas de Maria Auxiliadora. Vale ressaltar que até 1990 o Estado esteve praticamente ausente nesta região. Era a Igreja que cuidava também da educação e da saúde dos Povos Indígenas. Nos cemitérios de todas as paróquias há sepulturas de missionárias e missionários salesianos. Quando se despediam de seus familiares, sabiam que nunca mais retornariam. Fiz esta breve memória histórica como gratidão pelos missionários que nos precederam.

O Concílio Vaticano II trouxe profundas mudanças para a vida e a missão da Igreja. No decreto sobre a atividade missionária da Igreja está conceito “Semina Verbi” (Ad Gentes, 11), a Palavra que Deus semeia nas culturas de todos os povos. O Espírito Santo age no coração das pessoas e das culturas antes da chegada do missionário. Mas, este é o assunto da próxima pergunta

 

5.- Como o Evangelho se relaciona com as culturas e religiosidades indígenas? Como os indígenas vivem a sua fé?

Já faz alguns anos que o Pe Justino Rezende, salesiano da etnia Tuyuca, primeiro padre indígena do Rio Negro, encontrou uma diretriz que orienta nossa ação evangelizadora: “A boa nova das culturas indígenas acolhe a Boa Nova de Jesus”.

Ano passado realizamos semanas intensivas sobre Catequese Indígena Inculturada em todas as paróquias. Debruçamo-nos sobre os valores humanos que as 23 etnias viviam antes da chegada dos missionários e conservam até hoje. Alguns mesmo sendo proibidos, foram preservados na clandestinidade. Por exemplo, pajés e benzedores realizam benzimentos em muitos momentos, de modo especial para cuidar e proteger a vida desde o ventre materno. Ao nascer a criança recebe o benzimento do nome indígena. Esta prática foi proibida pelos primeiros missionários, mas continuou sendo realizada clandestinamente. Hoje associamos está prática ao batismo. O benzimento do nome integra a criança na cultura da sua etnia, confere-lhe a identidade indígena. Ao receber o batismo cristão, é inserida na grande família do Povo de Deus, a Igreja que abarca todos os povos e culturas. Na celebração da Crisma, os jovens trazem no crachá o nome de benzimento e de batismo. São confirmados na fé cristã que acolhe e ilumina os valores humanos e religiosos da sua cultura. A Diocese de Roraima ainda conserva o primeiro livro de registro de batismos. Há nele algo muito curioso e original. Os monges beneditinos, evangelizadores dos indígenas roraimenses a partir de 1908, ao registrar os batismos, ao lado do nome cristão (geralmente o santo do dia) colocavam também o nome indígena recebido em casa. Que bom seria se pudéssemos resgatar novamente esta prática nos registros de batismos e nos registros dos cartórios civis!

Poderia ainda discorrer sobre o “ajuri”, o trabalho comunitário; a “quinhapira”, a refeição comunitária; as “relações de parentesco” que tornam os índios todos parentes; os numerosos “benzimentos” e outros. Nos roteiros de catequese, em fase final de elaboração, relacionamos a boa nova destes valores com a Boa Nova de Jesus. A “quinhapira” tem tudo a ver com a partilha dos bens, com a Eucaristia. As “relações de parentesco” explicita o sonho da fraternidade universal: somos diferentes, falamos 18 línguas, mas somos profundamente iguais em dignidade e diretos. Nas relações de parentesco há algo original entre indígenas rionegrinos: os casamentos são inter-étnicos. Por exemplo, um indígena Tariano nunca se casa com uma mulher da mesma etnia, mas procura uma mulher Desano, Arapaso ou Piratapuia… Assim, a criança primeiro aprende a língua da mãe. Depois, se for menino, acompanhando as atividades do pai aprenderá a língua paterna. Na escola aprende português. Na extensa fronteira com a Colômbia e Venezuela, aprende também o espanhol. São quase todos poliglotas.

Gostaria de lembrar aqui duas visitas do Cardeal Dom Cláudio Hummes, presidente da Comissão Episcopal para a Amazônia. Foi meu professor de filosofia no Seminário de Viamão, RS. Devo agradecer-lhe porque começou a visitar a Amazônia a partir de São Gabriel da Cachoeira. Antes das orientações do Papa Francisco, escolheu uma periferia geográfica e existencial. Na primeira visita abençoou a Fazenda da Esperança. Na segunda vez veio a pedido do Papa Francisco. Quis acompanhar uma semana da Catequese Indígena Inculturada. Andou conosco dez horas de “voadeira” (bote de alumínio com motor de popa), exposto ao sol abrasador. Apesar dos seus 80 anos, não manifestou cansaço e nem sentiu dores na coluna. Acompanhou atentamente cinco dias de partilha e formação com setenta catequistas indígenas na paróquia de Yuaretê. No fim concordou em concelebrar a missa em Tukano e apoiou-nos para buscar a aprovação da Santa Sé.

Economicamente, o que mais pesa para a diocese são os combustíveis. Para realizar uma viagem de ida e volta a Pari Cachoeira, a paróquia mais distante, gasta-se mais de R$ 4.000, reais, e quase dois dias de viagem. E deve-se carregar o combustível também para a volta. Por isso, nas visitas pastorais, chamadas de “itinerâncias”, para compensar o custo tão alto, costumo permanecer até 15 dias para poder visitar o maior número possível de aldeias.

 

6.- Qual é a situação das diferentes etnias indígenas na região em que o senhor atua, na Amazônia? Quais são as maiores dificuldades e desafios que esses povos enfrentam?

Algo que chocou os primeiros missionários foi constatar que, apesar das relações de parentesco, algumas etnias eram tratadas com inferiores. Os missionários procuraram afastá-los daqueles que, inclusive os exploravam no trabalho. Mesmo assim, ainda hoje estas etnias vivem muito pobres, marginalizadas e vulneráveis.

Talvez poucos saibam que o Rio Negro é chamado de “rio da fome”. Comparando com os grandes rios da Amazônia (Solimões, Madeira, Japurá), abundantes de peixes durante o ano inteiro, o Negro, apesar de ser o maior afluente do Amazonas, tem poucos peixes. Não dá nem para saciar a fome de uma população de aproximadamente 100.000 habitantes. Os peixes não gostam das águas escuras porque são ácidas. Além disso, grande extensão do leito do rio tem muitas pedras, outro obstáculo para a reprodução. Na época das cheias, a situação torna-se dramática, pois os escassos peixes passeiam nas imensas áreas alagadas – os igapós- em busca de frutas e outros alimentos e a pesca torna-se ainda mais difícil.

Doenças muito frequentes como diarréia, pneumonia, tuberculose são causadas pela subnutrição. O índice de mortalidade infantil é muito elevado. A Pastoral da Criança presente e atuante está ajudando muito.

É urgente, portanto, cuidar da segurança alimentar através da criação de peixes em viveiros, da criação de aves e outros animais de pequeno porte. Nisso, porém, há dois problemas. A ração para os peixes é muito dispendiosa, levando em conta que todo deve vir de Manaus. Além disso, os índios acham que os animais domésticos devem procurar a própria alimentação assim como fazem as pacas, cotias, tutus e antas.

Outro grave problema é o alcoolismo que acompanha muitos de nossos irmãos indígenas. Mesmo sendo proibida nas aldeias indígenas, a malvada da pinga acaba chegando em toda a parte. E quando eles vêm à cidades para retirar os benéficos sociais e fazer as compras, muitos não resistem a tentação de enfiar a cabeça no pote e bebem até capotar. E quando bebem tornam-se agressivos e briguentos. Há três anos, com muito sacrifício, a Diocese construiu uma Fazenda da Esperança para ajudar na recuperação dos drogados. Tem ajudado a vários, mas não tem condições de acolher a muitos que precisariam.

Outros grandes desafios: preservar o rico patrimônio das culturas e línguas face ao rolo compressor da globalização da mídia, impedir a derrubada da floresta, vencer o fascínio de migrar para as cidades. É preocupante a contradição da Amazônia que possui áreas imensas despovoadas e uma população que se concentra cada vez mais nas grandes e caóticas cidades.

 

7.- Que avaliação o senhor faz dos dois anos do pontificado do Papa Francisco?

Depois de longo e tenebroso inverno, estava morrendo de saudade de um novo João XXIII. E de repente o Espírito Santo nos enviou Francisco. Como João XXIII, o Papa Francisco é um cristão vestido de Evangelho na sede de Pedro. Transcorridos dois anos, percebemos com clareza que os cardeais não apenas elegeram um Papa, mas também um programa. Cientes ou não, ao escolheram Francisco estavam permitindo que o fogo do Espírito acendido na V Conferência do CELAM em Aparecida (2007) fosse levado para Roma, para agitar o Vaticano e sacudir a Igreja Universal. A Conferência de Aparecida marcou o momento de amadurecimento de uma teologia com enfoque evangelizador, missionário, com decidida opção pelos pobres que agora é proposta para toda a Igreja através da lúcida e corajosa exortação apostólica Evangelii Gaudium. Jamais um Papa apresentou um programa de renovação da Igreja tão abrangente e que nos compromete e empolga a todos. Sua contagiante alegria, seus gestos espontâneos, suas atitudes repletas de calor humano, suas palavras claras e contundentes, nos comovem, nos encantam, nos arrastam para praticar o que nos propõe. A revista Famiglia Cristiana divulgou uma pesquisa da Demópolis que revela que Francisco tem 93% de aprovação entre os católicos e 70% entre ateus e seguidores de outras religiões. Ele fala para a humanidade. A sua Igreja é de todos porque é uma casa de portas escancaradas como o coração misericordioso do Pai.

O modelo de Igreja que Francisco nos propõe ele próprio o viveu nas periferias geográficas e existências onde aprendeu a “ser pastor com cheiro de ovelha”, como ele mesmo nos diz:

“Saiamos, saiamos para oferecer a todos a vida de Jesus Cristo! Repito aqui, para toda a Igreja, aquilo que muitas vezes disse aos sacerdotes e aos leigos de Buenos Aires: prefiro uma Igreja acidentada, ferida e enlameada por ter saído pelas estradas, a uma Igreja enferma pelo fechamento e a comodidade de se agarrar às próprias seguranças. Não quero uma Igreja preocupada com ser o centro, e que acaba presa num emaranhado de obsessões e procedimentos. Se alguma coisa nos deve santamente inquietar e preocupar a nossa consciência é que haja tantos irmãos nossos que vivem sem a força, a luz e a consolação da amizade com Jesus Cristo, sem uma comunidade de fé que os acolha, sem um horizonte de sentido e de vida. Mais do que o temor de falhar, espero que nos mova o medo de nos encerrarmos nas estruturas que nos dão uma falsa proteção, nas normas que nos transformam em juízes implacáveis, nos hábitos em que nos sentimos tranquilos, enquanto lá fora há uma multidão faminta e Jesus repete-nos sem cessar: «Dai-lhes vós mesmos de comer» (Mc 6, 37).

Durante a Jornada Mundial da Juventude, quando falou aos bispos do Brasil, Francisco lembrou com ênfase a missão na Amazônia. Apresentou “a Amazônia como teste decisivo, banco de prova para a Igreja e a sociedade brasileira… A Igreja está na Amazônia, não como aqueles que têm as malas prontas na mão para partir depois de terem explorado tudo o que puderam. Desde o início que a Igreja está presente na Amazônia com missionários, congregações religiosas, sacerdotes, leigos e bispos, e lá continua presente e determinante no futuro daquela área… Queria convidar todos a refletirem sobre o que Aparecida disse a propósito da Amazônia (nn. 83-87 e 475), incluindo o forte apelo ao respeito e à salvaguarda de toda a criação que Deus confiou ao homem, não para que a explorasse rudemente, mas que a tornasse um jardim… Gostaria de acrescentar que deveria ser mais incentivada e realçada a obra da Igreja. Fazem falta formadores qualificados, especialmente professores de teologia, para consolidar os resultados alcançados no campo da formação de um clero autóctone, inclusive para se ter sacerdotes adaptados às condições locais e consolidar, por assim dizer, o “rosto amazônico” da Igreja. Nisto lhes peço, por favor, para serem corajosos, para terem parresia! No modo “porteño” de lhes falar, lhes diria para serem “corajudos”(destemidos) (Palavras do Papa Francisco no Brasil, Paulinas 2013, p 106-108)

No dia 13 de março, ao completar o segundo ano de sua eleição, o Papa Francisco nos surpreendeu com um grande presente. Anunciou o Ano Santo da Misericórdia. Num mundo frio e desfigurado pela globalização da indiferença, obsecado pela idolatria do dinheiro que mata as pessoas, pela crueldade das guerras que matam milhares de indefesos e inocentes, ergue-se um surdo clamor por misericórdia. Francisco reassume as palavras proféticas de São João XXIII: “Não é Evangelho que muda, somos nós que começamos a compreendê-lo melhor”. E na abertura do Vaticano II disse: “A Igreja consegue mais com o remédio da misericórdia do que com o bastão da severidade”.

Por fim, não é por acaso que a beatificação de Dom Oscar Romero, engavetada na Cúria Romana, ocorra justamente com Francisco, primeiro Papa latino-americano e grande defensor de uma “Igreja pobre para os pobres”. Muitas palavras e gestos de Francisco já estavam em Romero, um pastor que viveu no meio dos pobres. A ele se poderiam aplicar o que Francisco disse aos novos cardeais: “Não se deixem dominar pelo medo de perder os salvos; pelo contrário tenham audácia de salvar os perdidos”. A beatificação de Dom Romero sem necessidade de provar um milagre após ser proclamado mártir da fé, é coerente com Francisco e respalda a luta pela justiça social na América Latina.

 

8.- O senhor se identifica com as palavras do papa, de termos sempre presente o Evangelho e seguir o Evangelho? O que isso significa nos dias de hoje?

Em relação ao Evangelho, o amado Francisco de Roma se identifica com São Francisco de Assis que assumiu como programa de vida: “Gostaria de viver o Evangelho como Jesus o viveria se voltasse outra vez à terra”. “O discípulo não está acima do mestre; todo discípulo bem formado será como o mestre” (Lc 6,40). “A semelhança é a medida do amor”, ensina-nos o Beato Charles de Foucuald, outro apaixonado pelo amado Irmão e Senhor Jesus. A profunda amizade do Papa Francisco com Jesus é a espinha dorsal da Evangelii Gaudium. Há nela passagens comoventes reveladoras desta amizade:

“Não se pode perseverar numa evangelização cheia de ardor, se não se está convencido, por experiência própria, que não é a mesma coisa ter conhecido Jesus ou não conhecê-Lo, não é a mesma coisa caminhar com Ele ou caminhar tateando, não é a mesma coisa poder escutá-Lo ou ignorar a sua Palavra, não é a mesma coisa poder contemplá-Lo, adorá-Lo, descansar n’Ele ou não o poder fazer. Não é a mesma coisa procurar construir o mundo com o seu Evangelho em vez de o fazer unicamente com a própria razão. Sabemos bem que a vida com Jesus se torna muito mais plena e, com Ele, é mais fácil encontrar o sentido para cada coisa. É por isso que evangelizamos. O verdadeiro missionário, que não deixa jamais de ser discípulo, sabe que Jesus caminha com ele, fala com ele, respira com ele, trabalha com ele. Sente Jesus vivo com ele, no meio da tarefa missionária. Se uma pessoa não O descobre presente no coração mesmo da entrega missionária, depressa perde o entusiasmo e deixa de estar seguro do que transmite, faltam-lhe força e paixão. E uma pessoa que não está convencida, entusiasmada, segura, enamorada, não convence ninguém” (EG 266).

Francisco de Assis escutou Jesus lhe dizer: “Francisco, reconstrói a minha Igreja que está em ruínas”. Através do testemunho, das palavras e das propostas criativas e corajosas o Papa Francisco está nos convocando a renovar nossa Igreja com a urgência do tempo messiânico que exige de cada um de nós escolhas decisivas (cf Mc 1,15).

 

9.- Que reflexão a Quaresma e a Páscoa ainda têm a nos oferecer?

A Páscoa é o acontecimento central da história do ser humano e do mundo. Revela o Amor infinito e a Misericórdia sem limites de Deus, “pois Ele amou tanto o mundo, que deu o seu Filho único, para que todo o que nele crer não morra, mas tenha a vida eterna” (Jo 3,16).

Tornar presente a Páscoa de Jesus, fazendo sua memória, significa fazer acontecer hoje – na história do ser humano e do mundo – a passagem da morte para a vida que começa agora e alcança a plenitude na festa que no céu nunca se acaba.

A vida toda de Jesus de Nazaré é Páscoa, é passagem. “Eu vim para que todos tenham vida e a tenham em abundância” (Jo 10,10). “Eu vim para servir” (Mc 10,45). Para cumprir sua missão libertadora Jesus se torna próximo e solidário com todos os excluídos da vida, com todos os descartados da sociedade. Por mais baixo que alguém possa cair, nunca cairá a baixo da Misericórdia de Deus.

A Páscoa de Jesus se completa com sua morte na cruz e com sua Ressurreição, vitória da vida sobre a morte. “Tendo amado os seus que estavam no mundo, amou-os até o fim” (Jo 13, 1). “Não existe amor maior do que dar a vida pelos amigos” (Jo, 15,13).

Fazer acontecer a Páscoa é fazer acontecer o Amor onde a vida do ser humano e do mundo são ameaçadas, negadas e assassinadas, nas periferias geográficas e existenciais: dos Índios expulsos de suas terras; dos Negros discriminados e relegados ao último lugar; dos Moradores de Rua; dos Catadores de Lixo; dos Encarcerados; dos Sem-Terra; dos Sem-Moradia; dos Sem-Trabalho; dos Subempregados; dos Trabalhadores em condição de trabalho escravo; dos Doentes que não são atendidos pela Saúde Pública; dos Doentes que morrem à míngua por falta desse atendimento; das Crianças e Jovens que têm uma Educação Pública de baixa qualidade; das Crianças e Jovens que se envolvem com as drogas por falta de Políticas Públicas; das Crianças e Jovens abandonados; dos Idosos abandonados; das Mulheres marginalizadas e violentadas; do Povo que não tem um Transporte Público digno; das Vítimas da Fome e Subnutrição; das Vítimas do Tráfico Humano para a exploração no trabalho; das Vítimas do Tráfico Humano para a exploração sexual; das Vítimas do Tráfico Humano para a extração de órgãos; das Vítimas da Exploração da Terra e das Águas; das Vítimas da Violência institucionalizada e de toda Violência; dos Descartados; de todos os Excluídos.

Tocando as chagas de Cristo nestas irmãs e irmãos crucificados de hoje é que encontraremos o Ressuscitado. “Não precisamos de um curso de reciclagem para tocar no Deus vivo, mas simplesmente sair às ruas indo procurar, encontrar e tocar as chagas de Cristo em quem é pobre, frágil, marginalizado. Uma coisa que não é simples, natural. Peçamos a São Tomé que nos dê a coragem de entrar nas feridas de Jesus com a nossa ternura e certamente teremos a graça de adorar o Deus vivo” (Papa Francisco, Homilia 03/07/13).

E vamos prosseguir concretizando o que cantamos na Campanha da Fraternidade:

“Em meio às angustias, vitórias e lidas,
no palco do mundo, onde a história se faz
sonhei uma Igreja a serviço da vida.
Eu fiz do meu povo os atores da paz!

Quero uma Igreja solidária, servidora e missionária,
que anuncia e saiba ouvir. A lutar por dignidade,
por justiça e igualdade, pois “Eu vim para servir”!

Preciso de gente que cure feridas
que saiba escutar, acolher, visitar.
Quero uma Igreja em constante saída
de portas abertas, sem medo de amar!

 

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Desejo transmitir um abraço agradecido a toda equipe do IHU que presta um grande serviço na comunicação da verdade sob a orientação do amigo Pe Inácio Neutzling, SJ. Ofereço um abraço fraterno com votos de feliz Páscoa a você que teve paciência de ler esta entrevista de um pobre bispo do coração da Amazônia.

 

Patricia Fachin – Instituto Humanitas Unisinos – IHU (www.ihu.unisinos.br)

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