Esquema desta apresentação
1. Agradecimentos. O convite do Bizon me obrigou a reviver experiências antigas, a reler livros e escritos antigos, a ler livros que não tinha lido; e a revisar minha vida atual e minha ação pastoral.
2. Ligando com as colocações do Gunther e esclarecendo os meus objetivos.
. Gunther apresentou a vida do Ir. Carlos a partir da 1ª Conversão e a caminhada na busca do último lugar.
. Eu vou fazer uma leitura das experiências importantes da vida de Charles de Foucauld. É para isso, vou acolher a divisão que faz o ir. Antoine Chatelard. Escolhi este autor porque ele se guia em todo momento pela própria palavra do Ir. Carlos, melhor falando pelos seus escritos.
Notas. A primeira nota a destacar é agradecer à cultura francesa e à cultura militar pelo valor que se deu (não sei se hoje continua dando-se) ao ler e escrever. Não havia WahtsApp, graças a Deus. E Charles é um leitor compulsivo de tudo o que for possível e um escritor caprichoso, deparado e que expressa magnificamente os fatos, os dados e os sentimentos. Tenho inveja da educação que recebeu e da sua disposição para escrever. E nossa cultura, eh?
. Dividirei a minha comunicação em quatro pontos, seguindo as quatro etapas da vida de Ir. Carlos; e algumas considerações finais
3. O tempo até a 1ª conversão é dividido em dois períodos diferentes: a infância e adolescência até a primeira comunhão com 14 anos; e o período dos 14 aos 28, quando acontece a conversão.
4. A etapa da infância é avaliada por ele próprio como um tempo feliz, apesar de ter perdido os pais com seis anos de idade. Os pais são muito bem avaliados: o pai, muito doente e afastado procurando cura é admirado; e a mãe é uma santa. Outros dados relevantes: os órfãos vão morar com os avós; o avó é militar; a guerra com a Prusia impõe que mudem de residência e se definam como franceses e contra os prussianos / alemães. A educação recebida, num ambiente católico praticante é muito ‘afetuosa mas frouxa’, talvez possamos traduzir por carinhosa mas permissiva. Eu gostaria mais ver o valor da liberdade no amor. A minha liberdade não termina na liberdade do outro, quando o assunto é amor. Porque a liberdade de Deus arrassaria com a minha caminhada rumo ao amor gratuito. O amor prolonga e potencia a liberdade do outro, para torná-lo capaz de amar como Jesus amou, gratuitamente.
Certamente a marca mais importante deste período é o amor na família, sem os pais biológicos, mas agregando aqui tias e primas. E isso me lembra a vivencia dos povos indígenas do Brasil e de muitas famílias pobres.
Sobressai nessa experiência Marie de Bondy, sua prima, oito anos mais velha que ele. Ela cuida dele, se preocupa dele, não o abandona, responde às suas inquietações, é confidente, orienta ele e oferece a possibilidade de falar com Pe. Huvelin. Ele a define como irmã e mãe. Ele a admira pela sua inteligência e sua virtude, segundo as palavras dele. Curte uma ligação muito profunda, que nunca o abandonará. A influência desta figura será fundamental em todo o seu processo. É uma mulher cristã muito virtuosa e muito virtuosa. Sua religião pode ter o que eu busco. O casamento dela lhe causa muito sofrimento: já não tem a exclusividade do seu amor.
A relação com os amigos desta época é profunda e permanece firme apesar das mudanças na sua vida e na vida dos amigos. Chatelard mostra que é um amor de posse, que se entrega totalmente e exige reciprocidade, quase exclusividade.
-> Experiências marcantes: amor da família e amor dos amigos. Poderiamos falar de absolutos: o absoluto do amor gratuito e o absoluto da amizade?
5. Dos 14/15 anos aos 28, é o período do Abandono das práticas religiosas e da fé em qualquer religião.
Fatos marcantes: saída do círculo familiar; entrada na escola St. Genevieve; expulsão por mau comportamento; morte do avó; estudos na Escola para Oficiais em St. Cyr; conclusão em Seamur, em último lugar; alocados em várias guarnições; expulso do exército por conduta indecorosa e mal exemplo; vai morar com Mimi, em Evian; ‘chamada’ da ação; abandona a Mimi; e se lança em uma exploração; esta dura pouco tempo e ele tem que voltar para a caserna; não aguenta e se demite; parte em uma exploração do Marrocos por própria conta; depois desta expedição, volta a Paris e escreve suas explorações; recebe um prémio da Sociedade Geográfica e se converte em uma autoridade reconhecida; realiza uma série de viagens com motivos desses empreendimentos; quase formaliza um casamento, que certamente não lhe faria bem. A prima Marie de Bondy o ‘salva’ desse casamento; volta a Paris, mas algo mudou na sua vida: a vida dos muçulmanos que visitou e observou o marca profundamente; dai para frente vive como um pobre nómade do deserto; lê muito e, em especial, os filósofos antigos que falam das virtudes.
6. Aprendizagens dessa época, que tem uma profunda influencia na sua vida.
1) A religiosidade profunda de uma mulher tão inteligente. Sua maneira de viver a religião católica naquele momento. Carlos se pergunta será que essa religião não tem valor.
2) A religiosidade profunda dos muçulmanos, tão sofredores, tão abandonados aos absoluto de Deus, tão religiosos, fieis cumpridores. O Deus tem que ser um Absoluto. Porém, ele não se converterá ao Absoluto dos muçulmanos, mas a Jesus Cristo vivo.
3) O exército, que não adorava, lhe dá algumas experiências importantes: a disciplina no agir, o gosto pela ação, as habilidades da cartografia, o aprendizado de línguas, o gosto por explorar e chegar aonde ninguém chegou antes, o gosto pela ação e a organização, o prazer de conhecer e entender os outros povos no mais profundo da sua cultura; o capricho com os outros, soldados; gosto por conhecer territórios e estabelecer amizade com os outros.
4) Na linha mais pessoal, este período significa uma série de perdas que o marcam profundamente: o avó, a proximidade da família, a tenra amizade da prima, a perda da fé. E experimenta o vazio, o tédio, a rejeição dos amigos e colegas. Eu era mais porco que homem.
? Tudo isto está nas suas cartas, nos seus escritos, nas suas meditações.
Uma das coisas que mais me chama a atenção é que o olhar do já Ir. Charles: ele olha para trás sem irá. Me atrevo a dizer que ir. Carlos não fala muito do pecado. Muito pelo contrário, ele afirma “Eu te abandonei, tu nunca me abandonaste”. É magnífica a imagem que dá título à obra de J. Lepetit: “o Parceiro invisível”.
E aqui cabe uma reflexão teológica fundada na afirmação contundente de Paulo: “onde abundou o pecado, sobreabundou a graça; a primazia da graça. E uma sugestão pastoral: vale a pena ressaltar em primeiro lugar e quase único a presença do pecado, do demônio, do mundanismo, da sexualidade desenfreada…. e não falar quase nada da presença do Reino, vivo, operante, mesmo que pareça ‘invisível’? Não será está a ‘alegria do evangelho’ que nos o Francisco atual tanto nos anima a encontrar?
Conversão é um processo constante
Vou fazer algumas considerações muito discutíveis sobre seu processo de conversões. As imagens que temos sobre as conversões acenam sempre para um momento na vida dos ‘santos’, o momento em que formulam sua entrega incondicional a Cristo. Assim falamos da ‘conversão de S. Paulo’ ou da experiência de S. Francisco de Assis, diante do Cristo de S. Damião; e se busca nas Escrituras o exemplo da primeira chamada de Jesus aos Apóstolos. Os papas recentes e os teólogos e pastoralistas falam quase sempre da necessidade do “encontro com Cristo vivo hoje”. E acrescentam dados muito importantes sobre onde encontrar-se com Jesus vivo hoje: na Palavra, acolhida, meditada, estudada e praticada; na Liturgia, especialmente na Eucaristia; e no serviço ao pobres e a todos os sofredores. Não vou questionar essas formulações. Vou tentar pensar sobre a ‘conversão’ do Ir. Carlos. Talvez isso ajude.
7. Parece-me que os autores falam de várias conversões: duas ou três, ao menos. Eu gostaria apresentar uma reflexão sobre os processos de conversões: há várias chamadas de Deus e há várias respostas do ir. Carlos. Até o final da sua vida. Gunther falava de uma conversão diária.
8. A volta de ir. Carlos às práticas religiosas se concretiza na confissão dos pecados, obedecendo ao Pe. Huvelin. Não se estou errado: nunca antes tinha falado com ele. Mesmo que ambos se conhecem através da prima Marie e talvez pelas pregações do padre. A proposta de Huvelin é uma ordem. Sem dúvida é graça de Deus nessa ordem e nessa aceitação. Primazia da graça. Mas eu quero ver a Deus agindo por causas segundas. Por exemplo, será que podemos que a graça de Deus, que a autodoação de Si mesmo, estava trabalhando antes: pelo amor da família, pela doce pressão da prima Marie, pelo seu testemunho de vida, pela religiosidade muçulmana, pela rejeição dos colegas de farda, pelo sentido militar da obediência, nas leituras?
E quero ver a graça de Deus agindo nos fracassos, pela experiência do tédio, do vazio, Isso são as ‘pragas do Egito’ anteriores à libertação! Será que há libertação sem pragas?
9. As formulações sobre a conversão precisam ser contempladas para ver os caminhos de Deus. “Meu Deus, se existis, fazei que eu vos conheça”.
10. A conversão de ir. Carlos não é conversão do pecado para a prática religiosa; mas do tédio, da morte, de ser considerado porco para… Não é uma conversão moral, mesmo que a inclui. Nem da indisciplina para a norma. Para que ou para quem se converte o ir. Carlos? Há várias conversões.
Penso que a primeira conversão está determinada pelo Absoluto de Deus. Formula assim: “Tão logo acreditei que Deus existia, compreendi que não poderia fazer outra coisa senão viver para ele: minha vocação religiosa data do mesmo momento que minha fé. Deus é tão grande! Há tanta diferença entre Deus e tudo o que não é ele!”.
Não é apenas fugir do pecado, mas entregar a vida. A referencia ao filho pródigo acena para a misericórdia do Pai, mais que para o arrependimento filho. O amor é mais forte que qualquer pecado e não exige humilhação. Não é o “eu era bêbado e vivia drogado; encontrei Jesus, xô Satanás”.
Convertei-vos e crede no evangelho. Não é o mesmo que retomar as práticas religiosas ou cumprir a moral sexual.
10. Huvelin o orienta para Jesus. E Jesus se converte para Ir. Carlos num amigo ‘apalpável’, como dizia s. Joao. Ele não reza a um Deus distante, nem a um milagreiro, mas a um amigo. Não inventa o método histórico-crítico, mas as suas meditações são mais existenciais que dogmáticas; mas diálogos que normas; e mais testemunho que pregação.
11. Outras ‘conversões’ ou outras etapas no processo de entrega, ele gosta de falar de ‘abandono’.
Ir. Carlos se converte a Jesus, ao Jesus Bom Pastor e ao Pai do Filho Pródigo. Quero ver aí a influencia de Pe. Huvelin. O Absoluto de Deus, tão admirado nos muçulmanos, se transfere para a ‘imitação’ de Jesus. Bem diferente do ‘sacrificialismo’ do Tomás de Kempis. A imitação de Jesus é por amor. Vejam onde estão as experiências do amor familiar, dos amigos, dos colegas. Amar é imitar. S. João da Cruz formulará uma imagem semelhante: Orar é amar e sofrer com o amado (mas não pelo gosto de sofrer, senão porque o amor não é amado). Agostinho verá isso com um tom de lamento: “ô beleza infinita, quão tarde te conheci”. Ir. Carlos formula melhor: “Logo que te conheci, percebi que só poderia viver para ele”.
12. São constantes as mudanças: nunca muda por falta de disciplina e por não cumprir. Explica a sua saída da Trapa e do exército pelas mesmas razões: “Saí porque tinha entrado – pelos mesmos motivos – não por inconstância, mas por constância na busca de um ideal que eu esperava encontrar lá, e que não encontrei.”
13. A imitação de Cristo o leva na Trapa; depois em Nazaré. Essa busca é de silencio, de semelhança física.
Viver como Jesus… em Nazaré. Mas não deu certo.
Viver como Jesus… servindo a todos: enfermos, esmolas
Viver como Jesus… com os últimos
Viver como Jesus… como irmão ‘universal’
Viver … como Jesus viva em Nazaré – sem roupas especiais, sem privilégios, servindo, sem pregar… trabalhando com as mãos.
Viver e morrer como o grão de trigo.
14. Algumas considerações
1. Valor das experiências das crianças para a catequese e para a pregação. Não é o ensinamento moral e de práticas religiosas, mas o ‘amor familiar’, entranhável, liberador, gratuito… Quanto tem que aprender nossas catequistas da Marie de Bondy. E os pregadores do Huvelin e dos muçulmanos.
2. Predecessor do Vaticano II.
. O Vaticano I nem se menciona. Estou tentado a pensar que a influencia do Vaticano I foi apenas nas formulações e discussões da teologia e da hierarquia. Por baixo dos gostos da Curia e dos Papas, corria a experiência do povo de Deus (o sensus fidei), que foi recolhido pelos teólogos e formulados em propostas mais pastorais e de misericórdia, como queria o Sto. Papa João.
. Em concreto, quero ver a marca da experiência de ir. Carlos em formulações conciliares sobre o ecumenismo, quando se afirma que a Igreja pode até aprender de outras igrejas, confissões e religiões, além do respeito devido aos caminhos de Deus, ou a liberdade de consciência.
. Outra valorização do ir. Carlos, seguindo Huvelin, que engata plenamente com o concilio é a leitura bíblica, como Palavra de Deus e não como simples doutrina ou argumento teológico, mas como diálogo com uma pessoa viva, um amigo.
. Também acho que há uma presença do Ir. Carlos na reflexão sobre a evangelização, sobre a enculturação e sobre os momentos da evangelização. Em concreto, na Evangelii Nuntiandi.
. No Papa Francisco já nem se fala.
José COBO,
fraternidade do Brasil