A decadência da figura do padre (Inácio José do VALE)

Em Milão, o Papa Francisco afirma que Igreja Católica tem de ser capaz de “encarar os desafios de frente”.

“A Igreja precisa sempre ser restaurada porque é feita de todos nós, que somos pecadores. Deixemo-nos sermos restaurados por Deus, por sua misericórdia. Deixemo-nos limpar nossos corações, disse o pontífice. Respondendo sobre a secularização e a sociedade multiétnica, multirreligiosa e multicultural de Milão, Francisco disse que uma das primeiras coisas que lhe vem em mente é a palavra “desafio”. Todas as épocas históricas, desde o início do cristianismo, foram submetidas a numerosos desafios, tanto na comunidade eclesial como na social. Não devemos temer os desafios, aliás, é bom que existam, porque são sinais de uma fé e de umas comunidades vivas que buscam o Senhor. Devemos temer quando uma fé não representa um desafio; elas fazem com que a fé não se torne ideologia. A Igreja, em toda a sua história, sempre teve algo para nos ensinar em relação à cultura da diversidade: as dioceses, os presbíteros, as comunidades, as congregações”, afirmou o Papa Francisco. (Milão, 25/03/2017).

Depois de Cinco Séculos Declina a Figura do Padre

“O declínio quantitativo das ordenações desenha, há dois séculos, uma curva descendente diante da qual se fecham os olhos, especialmente aqueles que estão sob uma mitra episcopal”.

O comentário é de Alberto Melloni, professor da Universidade de Modena-Reggio Emilia e diretor da Fundação de Ciências Religiosas João XXIII, em Bolonha, em artigo publicado por La Repubblica, 22/03/2017. A tradução é de Ramiro Mincato.

Alguns grandes ciclos históricos terminaram com eventos estrondosos. Outros, ao contrário, encerraram-se quase despercebidamente, embora não menos importantes do que aqueles aos quais a ereção de um monumento ou uma linha de texto num manual escolar concedem eterna glória. No silêncio exauriu-se um grande ciclo: a do padre. Esta formidável invenção do século XVI, que moldou a cultura e a política, a psicologia e a vida interior, a arte e a teologia do Ocidente e das suas antigas colônias não desapareceu (são cerca de 420 mil padres no mundo), mas, há mais de três séculos, está em crise: na Itália, em noventa anos passamos de 15 mil para cerca de 2.700 seminaristas.

Claro que fatores extrínsecos têm algum peso: amanhã a desgraça da pedofilia que a lente da mídia faz parecer um crime específico dos padres; ontem, a preguiça das autoridades em discutir o celibato eclesiástico; hoje, a simonia soft que remunera presenteando dioceses – prêmios dados para quem “fabrica” padres numerosos ou vistosos. Conta ainda nesta fase histórica a reverberação sobre o clero da queda das qualidades intelectuais das classes dirigentes às quais pertencem tanto aqueles que escolhem o sacerdócio como aqueles que o conferem. A questão se encrava ainda mais profundamente na história.

O padre que conhecemos tem data precisa de nascimento: o Concílio de Trento, concluído em 1563. E o enorme esforço com o qual tentou marcar uma cesura (contestada pelos protestantes que, em vez, acusavam a Igreja Católica de continuidade com o abuso) da reforma de Lutero. Tarde, mas com coragem, o Concílio tentou inventar remédios desconhecidos: impôs, por exemplo, aos bispos a residência na diocese, impedindo-os de assídua frequência à corte papal. E inventou o padre: este, caçoado pela literatura e pelo cinema, o homem feito sábio somente pelos insucessos, santificado pelo peso institucional daquilo ao qual se doa.

O zelo eclesiástico em condenar tudo a que se pode colar o sufixo “ismo”, empobrece suas leituras e torna-o estranho aos “seus”, que se tornam, de repente, “distantes”. A perda do papel e a negligência afetiva o expõe ao pior: da insípida exaltação do celibato que aprisiona a sexualidade em busca de sublimação até atrair ao presbiterato pessoas não resolvidas, ou mesmo doentes. Sua qualificação torna-se o nome de um vício nunca combatido suficientemente: o clericalismo.

Solidão e Sexo Virtual

De acordo com o teólogo e psicoterapeuta Wunibald Müller, os padres se sentem cada vez mais sozinhos. Por isso, é justo que eles possam viver em uma comunidade, se se quiser ajudá-los.

Em uma carta aberta, alguns padres da diocese de Colônia, por ocasião do 50º aniversário da sua ordenação presbiteral, põem em discussão a obrigatoriedade do celibato para o clero católico. Um dos motivos citados por eles é a solidão. O Dr. Wunibald Müller se ocupou por 25 anos de padres em crise na Recollectio-Haus, em Münsterschwarzach. Ele explica como os padres vivem em solidão e as suas consequências. Diz ele: “Esse vazio, por parte de alguns padres, é substituído por um excesso de comidas e bebidas. Outra compensação é a do sexo virtual na internet, que, nos últimos anos, aumentou entre padres e colaboradores eclesiais”. (Reportagem de Christian Wölfel, publicada no site Domradio, de 15/01/2017. A tradução é de Moisés Sbardelotto).

A Luta dos 90.000 Padres Casados da Igreja Católica

Dos sacerdotes casados no último meio século (desde o Concílio Vaticano II, em 1965), se disse que eram desertores. De uma década para cá aparecem como profetas. Em todo o mundo existem cerca de 90.000, dos quais pouco mais de 6.500 são espanhóis. São muitíssimos, se considerarmos que a Igreja romana tinha 413.418 sacerdotes (19.058 na Espanha) no ano passado, além de um grave problema de vocações. Com o número de católicos que conta o Vaticano (1,214 bilhão), a relação entre pastores e ovelhas (segundo a terminologia usual) é preocupante, de acordo com estimativas do próprio papa Francisco: 2.939 paroquianos por sacerdote e 236.555 por bispo. Essa é a primeira análise do Congresso Internacional da Federação Europeia de Padres Católicos Casados, que acontece neste fim de semana no centro de congressos Fray Luis de León, Guadarrama (Madri).

A Europa é o continente em que mais se vê a crise do catolicismo. “Uma vinha devastada pelos javalis do relativismo”, disse em 2010 o papa emérito Bento XVI. À diminuição das vocações sacerdotais, se junta um decréscimo de 9% dos padres ativos e o envelhecimento dos clérigos restantes (66 anos de média de idade). Os padres casados são a solução, ou melhor, a solução seria decretar o celibato opcional, não obrigatório, como fizeram outras religiões cristãs, e até mesmo abrir o sacerdócio para a mulher, como as igrejas protestantes? Francisco tem essas opções sobre a mesa. Ele mesmo reconheceu que a flexibilização das leis do celibato é uma porta aberta, descartando radicalmente, por outro lado, a ordenação de mulheres. Ele disse isso em abril de 2014, forçado por declarações prévias de seu secretário de Estado, o arcebispo Pietro Parolin, que haviam causado um curioso sobressalto midiático. “O celibato obrigatório não é um dogma da Igreja e pode ser discutido porque é uma tradição eclesiástica”, disse o primeiro-ministro do Papa. (Reportagem de Juan G. Bedoya, publicada por El País, 01/11/2015).

O sistema religioso vivido em nossa era é o mais terrível em toda história da humanidade. Provam o número de martírios, o terrorismo do fundamentalismo religioso, o ateísmo, a desconstrução do sagrado, o interesse econômico da teologia da prosperidade, e espetacularização de figuras religiosas nos palcos da luxúria, os cismas continuam e seus mentores excomungados, líderes religiosos ídolos do poder, tradicionalismo ante-evangélico e a patologia nos altares e nos púlpitos. A falta de amor e de comunhão no campo eclesial é um câncer. No confronto dessa era tão tenebrosa e seus desafios, é importante a humildade, a ternura, a mente epistemológica, o coração tomado pelo fogo do Espírito Santo para construir soluções para o bem da Igreja, do seu clero, dos seus fiéis e da humanidade.

Frei Inácio José do Vale
Psicanalista Clínico
Professor e Conferencista
Sociólogo em Ciência da Religião
Irmãozinho da Visitação de Charles de Foucauld
E-mail: pe.inacio.jose@gmail.com

Fontes:

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