CHARLES DE FOUCAULD HOJE, Dom Eugênio RIXEN, Semana de Teologia, PUC SÂO PAULO, junho 2016

CHARLES DE FOUCAULD HOJE
Dom Eugênio RIXEN
Bispo de Goiás

PUC SÂO PAULO, junho 2016, Semana de TeologIa

O livro de René Voillaume “Fermento na Massa”, traduzido do francês “Au coeur des masses”1 era leitura obrigatória no seminário na década de 1960.

Muitos padres, religiosos, religiosas, leigos e leigas foram profundamente marcados pela espiritualidade do irmão Carlos. Este queria um retorno à mensagem do Evangelho. Disse ele: “Precisamos reescrever o Evangelho com a própria vida”.

“Toda nossa existência, todo nosso ser deve gritar o Evangelho sobre os telhados: toda nossa pessoa deve respirar Jesus, todas os nossos atos, toda nossa vida devem gritar que somos de Jesus, devem apresentar a imagem da vida evangélica.; todo nosso ser deve ser uma pregação viva, um reflexo, um perfume de Jesus, algo que exclame Jesus, que faça ver Jesus, que brilhe como uma imagem de Jesus”2.

Vários bispos de diferentes continentes, inspirados pela espiritualidade do padre de Foucauld tiveram uma grande influência no Concílio Vaticano II (1962 – 1965). Já no final deste grande evento eclesial, alguns bispos assinaram o Pacto das Catacumbas3. Cinco bispos brasileiros assinaram este documento: João Batista da Mota e Albuquerque, Francisco Austragésilo de Mesquita Filho, José Alberto Lopes de Castro Pinto, Henrique Hector Gollaud Trindade OFM e Antonio Batista Fragoso. Este último participou do mês de Nazaré em Hidrolândia (GO), organizado pelas Fraternidades Sacerdotais “Jesus Caritas”, em janeiro de 1997.

Vários grupos se inspiram na espiritualidade do irmão universal: os Irmãozinhos de Jesus, os Irmãozinhos do Evangelho, as Irmãzinhas de Jesus, as Fraternidades Sacerdotais “Jesus Caritas”, as Fraternidades Seculares Charles de Foucauld, as Fraternidades Missionárias, etc…

Vamos agora apresentar alguns aspectos fundamentais desta espiritualidade.

1- O absoluto de Deus

Após uma adolescência e juventude longe dos valores cristãos que ele tinha aprendido na sua infância, Foucauld, visitando uma igreja em Paris e conversando com o padre Havelin, descobre o absoluto de Deus.

“Tão logo acreditei que havia um Deus, compreendi que não poderia ter outra atitude que não fosse a de viver somente para ele: minha vocação religiosa data do mesmo instante que minha fé: Deus é tão grande! Há uma grande diferença entre Deus e tudo o que não é ele”4

Não basta só conhecer a Deus, é preciso experimentá-lo ou procurar constantemente a sua face: “Meu Deus, meu Deus, eu te procuro! Minha alma tem sede de Ti, minha carne também te deseja, como terra seca sem água!” (Sl 63,2).

Alimentar o desejo de Deus era uma constante na vida do irmão Carlos. Uma grande inquietação morava nele: imitar Jesus de Nazaré. Por isso, após várias experiências em mosteiros trapistas (Nossa Senhora das Neves – França e Abbés – Síria), ele se instalou em Nazaré, como doméstico das clarissas. Mais tarde, fixou-se em Tamanrasset, no sul da Argélia.

Ainda hoje não basta conhecer a Deus, mas é preciso encontrá-Lo, ou, ao menos, procurá-Lo.

2 – A espiritualidade de Nazaré

O padre de Foucauld quer levar uma existência, a mais simples possível, imitando Jesus na sua vida em Nazaré. Escreve “conselhos” aos irmãos e irmãs do Sagrado Coração de Jesus, congregação que ele quer fundar:

“Os irmãos e irmãs do Sagrado Coração de Jesus farão esforços contínuos para se tornarem cada vez mais semelhantes a nosso Senhor Jesus, tomando por modelo sua vida em Nazaré, que oferece exemplos de tudo. A medida da imitação é a do amor – ‘Quem quiser me servir, que me siga’, ‘Eu lhes dei o exemplo, a fim de que, assim como eu fiz, vocês também façam’”5.

A vida de Nazaré consiste em levar uma vida simples e humilde. Mais do que pregar, o irmão Carlos quis testemunhar os valores do Evangelho, a vida escondida de Jesus em Nazaré.

No Pacto das Catacumbas, alguns bispos conciliares se comprometeram com esta espiritualidade.

“Procuraremos viver segundo o modo ordinário da nossa população, no que concerne à habitação, à alimentação, aos meios de locomoção e a tudo o que se segue (cf Mt 5,3; 6,33; 8,20)”6.

3 – A Oração Contemplativa

O irmão Carlos inspirou sua espiritualidade em São Bernardo, Santa Tereza de Ávila e São João da Cruz.

Santa Teresinha escreve: “Para mim, a oração é um impulso do coração, é um simples olhar lançado ao céu, um grito de reconhecimento e amor no meio da provação ou no meio da alegria”7.

Foucauld valorizou muito a oração contemplativa, principalmente diante do Santíssimo:

“Mas todos os dias é preciso dar um certo tempo à contemplação estritamente falada, a esta oração pura que simplesmente é um diálogo familiar, um terno derramamento da alma diante de Deus”8

A oração contemplativa alimenta nossa oração vocal, como é o caso da liturgia comunitária, mas esta última deve também enriquecer nossa oração contemplativa. Os dois modos de orar se fecundam mutuamente.

Faz parte da nossa espiritualidade a adoração eucarística regular e prolongada. A eucaristia está no centro da nossa fé. Contemplando o mistério central da nossa fé, nós aprendemos a imitar cada vez mais aquele que amamos.

4 – A pobreza evangélica

O Papa Francisco insiste que precisamos uma Igreja pobre e com os pobres. Deixemos Charles de Foucauld falar:

“Ó! Meu Senhor Jesus, eis então agora esta divina pobreza! Ó! Como é preciso que seja você quem me instruísse! Você a amou tanto!… Na vossa vida mortal, você fez dela a vossa companheira fiel… Você viveu trinta anos como pobre operário nesta Nazaré que tenho a honra de conhecer….Meu Senhor Jesus, como logo ficaria pobre aquele que amando a você de todo o seu coração e sofreria de ficar mais rico que o seu Bem Amado… Meu Deus, eu não sei se é possível para certas almas de ver-te pobre e ficar voluntariamente ricas, de se encontrar maiores do que o seu mestre…O amor de Jesus, o amor do próximo, o amor da nossa própria salvação, todos os três nos conduzem à pobreza, à pobreza perfeita, completa, semelhante a vós sem uma pedra para por a cabeça”9.

Dizem os Bispos do Pacto das Catacumbas:

“Para sempre renunciaremos à aparência e à realidade da riqueza, especialmente no traje (fazendas ricas, cores berrantes), nas insígnias de matéria preciosa (devem esses insignos ser, com efeito, evangélicos) (Mc 6,9; Mt 10,9s; At 3,6). Nem ouro, nem prata”10.

5 – A fraternidade

Irmão Carlos tinha uma profunda convicção de que todos somos irmãos, o mesmo sangue, a mesma vida divina circula em todos os seres humanos.

“Quero habituar todos os habitantes, cristãos, muçulmanos, judeus e idólatras, a ver-me como seu irmão universal. Eles começam a chamar a casa de “fraternidade” e isso me dá grande satisfação.
Somos todos filhos do Altíssimo! Todos… o mais pobre, o mais repugnante, um recém-nascido, um velho decrépito, o ser humano menos inteligente, o mais abjeto, um idiota, um pecador, o maior pecador, o mais ignorante, o último dos últimos, aquele que mais repugna no aspecto físico e moral é um filho de Deus, um filho do Altíssimo”11.

As várias fraternidades inspiradas do beato Carlos de Foucauld procuram viver esta vida fraterna através de encontros mensais de oração, de estudo e de revisão de vida. Seguindo o método “Ver-Julga-Agir”, inspirado da Ação Católica, os membros partilham suas vidas à luz da Palavra de Deus e procuram pistas de ação para transformarem-se a si mesmos e a sociedade na qual vivem.

Motivados pela fraternidade universal, alguns membros da fraternidade se engajam nas pastorais de fronteira, como a Pastoral Carcerária, a Pastoral da Terra, da Moradia, Indígena ou ainda partem em missão para lugares mais desfiadores no Brasil ou no mundo.

Um belo exemplo disso são as irmãzinhas de Jesus. Quando sua fundadora, irmã Madalena de Jesus, visitou os índios tapirapés no Mato Grosso, ela escreveu:

“A casa das irmãzinhas tornou-se a casa de todos. Fico feliz com essa confiança que inspiraram. Elas realmente fazem parte da tribo e se adaptaram totalmente. Quando os homens vão caçar ou pescar, elas recebem sua porção como qualquer outra família… Foi-lhes atribuído um lote de terreno que agora elas mesmas cultivam, mas podem servir-se em outros lotes. Em troca, estão disponíveis para todos, de dia e de noite, para cuidar deles. Na verdade, é essa ajuda mútua que possibilita, só ela, manterem-se num plano de igualdade e de amizade”12.

6 – O último lugar

Num mundo da competitividade, onde cada um quer ser mais que o outro, Jesus propõe a humildade e o serviço. Ele disse: “Quem se exalta será humilhado, que se humilha será exaltado”( Lc 18,14) e dá o exemplo quando lava os pés de seus discípulos (Jo 13,1-13). O maior é aquele que serve (Lc 9,46-48).

Escreve irmãzinha Madalena de Jesus:

“Há uma vontade de Deus muito clara de querer fazer que partilhemos da vida dos mais pobres, inclusive dos mais miseráveis…
Precisamos ir em busca não apenas do pobre que respeitamos, mas também do condenado, do culpado que se esconde e tem vergonha, perguntando-se quem irá ainda querer bem e amá-lo por amizade. E é por isso que tentamos agora nos aproximar dos detentos, na angústia moral de suas prisões”13.

7 – O diálogo ecumênico e inter-religioso

O testemunho religioso dos muçulmanos levam o irmão Carlos a se questionar sobre a sua própria fé:

“Confesso: o islamismo produziu em mim uma profunda mudança… a visão desta fé, dessas almas vivendo na contínua presença de Deus, fez-me entrever algo de maior e de mais verdadeiro do que minhas ocupações mundanas”14

Esta fé na transcendência de Deus já impressionou de Foucauld quando ainda jovem explorou o Marrocos. Os últimos 15 anos de sua vida, ele viveu na Argélia no meio dos muçulmanos, simplesmente testemunhando a sua fé.

“Minha missão deve ser o apostolado da bondade. A meu ver, deverão dizer: ‘já que este homem é tão bom, também sua religião deve ser boa!’ Se alguém me perguntar por que eu sou manso e bom, deverei responder: ‘Porque eu sou o servidor de um outro que é muito melhor do que eu. Se você soubesse como é bom o meu Mestre Jesus!’ Quero ser tão bom que possam dizer de mim: ‘Se o servidor é assim como não será o Mestre!’”15

8 – O deserto

Sabemos que na Bíblia, o deserto é o lugar da experiência de Deus. Moisés encontrou Deus na solidão do deserto através da sarça ardente (Ex 3,1-10). Elias fez a experiência de Deus no monte Horeb através de uma brisa ligeira (1Rs 19,1-8). O próprio Jesus, antes de iniciar a sua missão, ficou 40 dias no deserto, orando e jejuando (Mt 4,1-11).

Em 1898, o irmão Carlos escreve ao padre Jerônimo:

“É preciso passar pelo deserto e aí permanecer por algum tempo para receber a graça de Deus: é nele que nos despojamos, que afastamos de nós o que não é Deus e que esvaziamos completamente a pequena morada de nossa alma para deixar todo o lugar exclusivamente para Deus”16

O deserto é o lugar da experiência de Deus, mas também do encontro consigo mesmo e das suas sombras. É o lugar das tentações. Só vive bem quem é amante do silêncio!

Algumas considerações finais

A espiritualidade e o estilo de vida do beato Charles de Foucauld continuam bem atuais e são capazes de sustentar a mística de padres, religiosos/as e leigos/as nos dias atuais.

Dom Walter Kasper, cardeal alemão e presidente emérito do Pontifício Conselho para a Promoção da Unidade dos Cristãos faz as seguintes observações para a Igreja alemã:

“Apesar de todos os esforços pastorais realizados, as igrejas estão cada vez mais vazias no domingo e a sociedade mais descristianizada. Muitos têm a impressão de pregar para ouvidos surdos. Nessa situação difícil, o exemplo de Charles de Foucauld pode ser de grandíssima ajuda para muitos sacerdotes. Nós, cristãos, também somos filhos de nosso tempo; queremos planejar, fazer, organizar, controlar os resultados… Charles de Foucauld nos sugere uma abordagem diferente: imitar e viver a vida de Jesus em Nazaré”17

O mesmo cardeal convida a Igreja a ser mais misericordiosa para testemunhar melhor o Evangelho de Jesus Cristo:

“Também neste sentido é muito instrutiva a história da salvação. O publicano Levi converteu-se no evangelista São Mateus, e Saulo passou a ser São Paulo. Também alguns santos, como Carlos de Foucauld, começaram por ser uns fracassados; nos dias de hoje, em conformidade com os critérios vigentes para a nomeação de bispos, Santo Agostinho, por exemplo, se fosse considerada a sua vida passada, não chegaria nem a acólito”18

Concluindo podemos afirmar que as grandes intuições do beato Charles de Foucauld continuam bem atuais para alimentar uma verdadeira espiritualidade do seguimento de Jesus.

eugenio-rixen+ Dom Eugênio RIXEN,
bispo de Goias,
fraternidade do Brasil

PDF: CHARLES DE FOUCAULD hoje, Eugênio RIXEN, PUC SÂO PAOLO, junho2016

En busca do último lugar. Günther LEMBRADL, Semana de Teologia, PUC SÂO PAULO, junho 2016

EM BUSCA DO ÚLTIMO LUGAR

Günther LEMBRADL

Semana de Teologia, PUC SÂO PAULO, junho 2016

No dia 1 de dezembro de 1916, portanto cem anos atrás, em Tamanrásset, uma cidade da tribo dos Tuaregues no coração do Saara, foi morto o Pe. francês, Carlos de Foucauld, que agora em diante vou chamar simplesmente Ir. Carlos. Ele quis ser irmão de todos. Durante a sua vida ele quis fundar uma congregação, mas morreu sozinho, sem ver o seu projeto realizado. “Se o grão de trigo que cai na terra, não morrer, ficará só, mas se morrer produzirá muito fruto”. (João 12,24). Mais ou menos trinta anos após sua morte, veio a surgir a primeira congregação, os irmãozinhos de Jesus. Hoje ao redor do Ir. Carlos existe uma família espiritual muito numerosa. No dia 13 de novembro de 2005 Ir. Carlos foi declarado beato pelo Papa Bento XVI.

Quem é esta pessoa extraordinária cujo testemunho de vida atraiu tanta gente?

Carlos de Foucauld nasceu em 1858. Com 6 anos de idade era órfão de pai e de mãe. Com 14 anos fez a primeira comunhão e logo em seguida perdeu a fé. Com 28 anos, ele a recuperou. No mês de outubro ele é visto nas Igrejas de Paris rezando. A oração que repetia era: “Meu Deus, se você existir, eu gostaria de conhecê-lo”. No dia 29 ou 30 de outubro de 1886, ele tinha 28 anos de idade, entrou na Igreja de Santo Agostinho para pedir aulas de religião. O padre “Abbé Huvelin” o mandou ajoelhar e confessar. Logo depois lhe deu a santa comunhão. Carlos sai da Igreja tendo reencontrado a fé. Ele escreveu: “Logo que tinha a certeza de que Deus existe, só pude viver para ele”. Começa uma vida nova.

Numa homilia do Pe. Huvelin, ele escuta uma frase que iria “gravar-se indelevelmente em minha alma”, como afirmou. “Jesus tomou de tal maneira o último lugar que ninguém jamais pôde tirá-lo daqui.”

A partir de então Ir. Carlos inicia a aventura do seguimento de Jesus Cristo, a descida para o último lugar. Tema da minha colocação.

A pedido do Pe. Huvelin, que se tornou o seu guia espiritual, Ir. Carlos faz uma peregrinação para a Terra Santa. Ele chegou a Nazaré. Lá ele se defrontou com “a existência humilde e obscura do divino carpinteiro da Nazaré”. Ele descobriu o seu chamado: Viver a vida de Jesus de Nazaré. Mais tarde ele medita longamente sobre as palavras do Evangelho de Lucas. “Ele desceu com eles para Nazaré e lhes era submisso”. (Lc.2,51). “Vós descestes com eles (os pais) para viver, como eles viviam, a vida dos pobres artesãos, que vivem do próprio trabalho em Nazaré”. Ainda trinta anos após a sua conversão em 1916, ano de sua morte, Ir. Carlos medita em Tamanrasset: “Ele desceu com eles e foi para Nazaré: por toda a sua vida. Ele só desceu, desceu ao encarnar-se, desceu ao fazer-se filho, desceu ao obedecer, desceu ao fazer-se pobre, abandonado, exilado, perseguido, supliciado, ao colocar-se sempre no último lugar”. Buscar o último lugar para Ir. Carlos é o resumo de sua vontade em seguir Jesus Cristo. Aqui há uma intuição central da fé do Ir. Carlos, profundamente de acordo com o coração da revelação cristã.

Ir. Carlos tem a intuição de que ele encontra o último lugar no seguimento da vida de Jesus em Nazaré. Trinta anos de vida escondida, de trabalhador, desprezada. Natanael ao saber que Jesus é de Nazaré só sabe exclamar: “De Nazaré pode sair alguma coisa que presta”? (João 1,46)

Nazaré era uma cidade rejeitada, impura, pagã, sem importância, obscura e desconhecida. Não tinha história, referências, importância; não tinha voz. Foi em Nazaré que Jesus viveu trinta longos anos de vida escondida, sua infância, adolescência, sua juventude. Aqui ele entendeu o seu chamado, aqui encontrou a sua vocação, aqui amadureceu o projeto de sua vida.

A pergunta que Ir. Carlos se fez: como encontrar este último lugar? A busca deste último lugar leva Ir. Carlos primeiro para o Mosteiro da trapa. “Restava-me entrar na Ordem onde eu encontrasse a imitação mais exata de Jesus…sua vida privada de humildade e pobre artesão de Nazaré”. Em 1890, com 32 anos de idade ele entra no Mosteiro “Notre-Dame des Neiges”, com a previsão de ser enviado para uma nova fundação em Akbés na Síria. Ele escreve: “Por que entrei na trapa? Por amor, por puro amor…amo Nosso Senhor Jesus Cristo, embora com um coração que gostaria amar mais e melhor, mas, enfim, eu o amo e não posso suportar viver uma vida diferente da sua, uma vida doce e honrada quando a Dele foi a mais dura e desdenhada que jamais houve”. Mas a saudade de Nazaré não tardou. Na trapa não encontrou o que estava buscando, a sua inspiração profunda. “Aqui somos pobres na opinião dos ricos; não somos pobres como Nosso Senhor era…quanta diferença entre essa casa (de um morador do lugar) e as nossas moradas! Suspiro por Nazaré”.

Após sete anos de monge trapista e antes de fazer os votos perpétuos Ir. Carlos recebe a permissão de deixar a trapa, para viver a vida de Jesus em Nazaré. Ir. Carlos deixa a Trapa e vai para Nazaré. Lá ele fica num convento de Irmãs Clarissas. Durante três anos mora numa casinha dois por dois metros, para ler, rezar, meditar no silêncio e ao abrigo da clausura. Durante este tempo de deserto amadurece em Ir. Carlos uma nova convicção. Viver “a vida de Nazaré, minha vocação, não na Terra Santa tão amada, mas entre as almas mais doentes, as ovelhas mais desamparadas”. Seu pensamento volta á sua juventude quando percorreu Argélia como soldado e Marrocos como explorador, os dois países que somam dez milhões de habitantes, não havia nenhum padre no interior.

Em 1900 ele deixa Nazaré volta para França, se prepara para a ordenação sacerdotal. Em 09/06/1901 com 43 anos de idade, ele é ordenado padre pelo bispo da diocese de Viviers na França. A pergunta que Ir. Carlos se faz agora: Mas ir para onde? “É preciso ir não onde a terra é mais santa, mas onde as almas têm maior necessidade”. “Como nenhum povo me parecia mais abandonado do que esse, solicitei e obtive a permissão do prefeito apostólico do Saara de instalar-me no Saara argelino”. Foi em Beni Abbés,(1901) oásis mais próximo da fronteira marroquina, que Ir. Carlos foi construir seu eremitério. Em Beni Abbés Ir. Carlos é confrontado de transformar a sua vida monacal em vida de missionário. ”Não seguirei essa tendência, pois acredito que estaria sendo muito infiel a Deus, que me deu a vocação de vida reservada e silenciosa e não a do homem de palavras”. Fiel à sua vocação não queria viver outra vida senão essa imitação de Jesus de Nazaré, que era a sua vocação.

Ir. Carlos escolheu Beni Abbés pensando de ter encontrado o último lugar possível, mas esse último lugar o esperava ainda dois mil quilômetros no sul, no Hoggar, no coração do deserto do Saara. Numa carta seu amigo general Laperrine contou-lhe de uma mulher tuaregue que recolheu na sua casa e cuidou dos soldados franceses feridos numa batalha e não permitiu o seu extermínio. Desde então Ir. Carlos sentiu-se ser chamado para conhecer esta senhora no Hoggar. “Sinto calafrios, tenho vergonha em deixar Beni Abbés, de deixar a calma ao pé do altar para me lançar em viagens pelas quais tenho agora um horror tremendo… Apesar do que a razão opõe… sinto-me extremamente e cada vez mais impelido interiormente a viajar”. A razão porque Ir. Carlos quer ir para o Hoggar: “Vejo essas vastas regiões sem um padre, vejo-me o único padre que pode ir até lá”. Seu bispo, de início reticente, permitiu finalmente que Ir. Carlos partisse. Ao cabo de quatro meses de extenuantes caminhadas pelo deserto, ele chegou ao Hoggar em maio de 1904. Ir. Carlos agora tem 46 anos de idade. Foi uma nova etapa que ele encarou mais do que nunca, à luz de Jesus de Nazaré. “Escolhi Tamanrasset, povoado de vinte lares, em plena montanha no coração do Hoggar e dos Dag Rali, sua principal tribo. Escolhi esse lugar abandonado e nele me fixei e onde quero durante a minha vida, tomar por único exemplo a vida de Jesus em Nazaré”.

Em Beni Abbés Ir. Carlos ainda quis viver a vida monástica “um tipo de eremitério, humilde e pequeno…numa estreita clausura, na penitência e na adoração do Santíssimo Sacramento, não saindo do claustro” agora chegado em Tamanrasset (1905 com 47 anos de idade)ele mudou de ideia e se dá uma nova regra. “Tome como objetivo…levar a vida de Nazaré, em tudo e por tudo…nada de hábito como Jesus em Nazaré, nada de clausura como Jesus em Nazaré, nada de casas longe de lugares habitados, mas perto de um povoado como Jesus de Nazaré”. Para construir o seu eremitério não procurou um lugar solitário, como em Beni Abbés, mas, ao contrário um lugar acessível a todos. Ir. Carlos agora quer viver um apostolado de amizade. “Ao me verem, as pessoas devem dizer: Sendo esse homem tão bom, sua religião deve ser boa”.

Os anos passavam Ir. Carlos continuou seu caminho de descer para o último lugar, “sinto-me cada vez mais escondido e perdido como Jesus em Nazaré”. E como Jesus e com Jesus ele quer ser salvador. Para ser salvador “é preciso passar pelo sofrimento, pelo fracasso aparente, pela morte”.

No fim de sua vida Ir. Carlos se identifica com Jesus “Não somos mais nós que vivemos, mas Ele que vive em nós. Nossos atos não são mais atos nossos, atos humanos e deploráveis, mas são Dele, divinamente eficientes”. Como Jesus ele quer entregar a sua vida por amor. “Ninguém tem maior amor, do que aquele que dá a sua vida por seus amigos (João 15, 13)…desejo de todo o meu coração dar a minha vida por Vós”.

Este desejo se realiza. No dia 1 de dezembro de 1916 um grupo de Tuaregues rebeldes saqueou o eremitério, aonde Ir. Carlos se tinha retirado. Ele ficou sendo amarrado e vigiado por um rapaz de quinze anos. Num momento de pânico este rapaz ficou nervoso e atirou a queima-roupa em seu prisioneiro, que morreu na hora.

“Jesus tomou de tal maneira o último lugar que ninguém jamais pôde tirá-lo daqui.” Esta palavra marcou toda a vida de Ir. Carlos.

O último lugar

E nós? Aspirar ao último lugar para nós é um valor? Na nossa sociedade se presencia o contrário. A lei hoje é “Subir na vida a todo custo, conquistar um lugar ao sol, ser importante, sair da miséria”. Subir só pode quem está no chão, quem experimentou a dureza da miséria, quem tem fome de alguma coisa, quem ainda não encontrou a vida. Descer só pode quem já tem uma vida cheia; cheia de amor e de misericórdia, como Jesus Cristo que “estando na forma de Deus, mas renunciou ao direito de ser tratado como Deus. Pelo contrário, esvaziou-se a si mesmo e tomou a forma de servo, tornando-se semelhante aos homens. E sendo encontrado na figura de homem, rebaixou-se ainda mais, fazendo-se obediente até a morte, à morte de cruz”. (Fil.2,5ss). O último lugar não é um lugar já definido e pronto, que alguém pode escolher, mas é a opção de vida de alguém de abandonar-se nas mãos de Deus, deixar guiar-se por ele. Ao último lugar se chega após uma longa caminhada de descer. Buscar o último lugar é para gente corajosa que não tem medo de enfrentar aventuras.

Falei que a lei de nossa sociedade é subir na vida. Esta luta acontece não apenas na sociedade cívica, mas também na nossa Igreja. O Papa Francisco o denunciou na carta Evangelii Gaudium (A alegria do Evangelho) o mundanismo religioso que “busca em vez da glória do Senhor, a glória humana e o bem-estar pessoal”. Este obscuro mundanismo manifesta-se em muitas atitudes. “Há um cuidado exibicionista da liturgia, da doutrina, e do prestígio da Igreja” “encerra-se em grupos de elite” Dentro do povo de Deus, quantas ”guerras por inveja e ciúmes”, “busca pelo poder, prestígio, prazer ou segurança econômica e carreirismo” (EA 93-101).

Lembro-me, quando cursava o quarto ano de primário a nossa professora fez a cada um de nós a pergunta: “O que você quer ser na vida?” Um quis ser médico, outro quis ser motorista de caminhão, outro quis ser professor, outro quis ser advogado. Eu não me lembro de o que eu quis ser, mas nunca mais esqueci a resposta de um menino: “eu quero ser gari, varredor de rua”. Foi uma gargalhada só. Quando cheguei ao Brasil em 1967, conheci os irmãozinhos de Jesus, congregação que segue a espiritualidade de Ir. Carlos, que moravam numa periferia de Santo André. Guido, era padre, trabalhava como metalúrgico. Serafim tinha absolvido o estudo de música e era pianista, trabalhava como metalúrgico, Chico que era médico trabalhava como servente de pedreiro. Mais tarde encontrei em Manila nas Filipinas outro irmãozinho de Jesus, era professor da Universidade, depois que ingressou na Congregação dos irmãozinhos, virou vendedor de picolé. Os estudantes que o conheciam como professor vendo-o agora com seu carrinho de picolé, achavam que enlouqueceu. Como um médico, um professor universitário pode fazer isto? A resposta é: eles não se tornaram servente e vendedor de picolé porque são profissões tão atraentes, mas “por causa de Jesus e do seu evangelho” levaram a sério a palavra de Jesus: “Se alguém quer servir a mim, que me siga. E onde eu estiver, aí também estará o meu servo”. (João 12,26).

gunter-lembradlGünther LEMBRADL,
fraternidade do Brasil

Para preparar esta colocação utilizei o livro:
Charles de Foucauld, Nos passos de Jesus de Nazaré
Editora Cidade Nova 2004
Escrito por
Irmãzinha Annie de Jesus

PDF: EM BUSCA DO ÚLTIMO LUGAR, Günther LEMBRADL, Semana de Teologia, PUC SÂO PAULO, junho 2016

Nazaré, a mensagem de fraternidade universal de Carlos de FOUCAULD hoje. Aurelio SANZ BAEZA, Semana de Teologia, PUC SÂO PAULO, junho 2016

NAZARÉ:

A MENSAGEM DE FRATERNIDADE UNIVERSAL
DE CARLOS DE FOUCAULD HOJE

Aurelio SANZ BAEZA

PUC SÂO PAULO, junho 2016, Semana de Teologia

Toda a nossa vida, embora seja muito silenciosa, a vida de Nazaré, a vida de deserto, como também a vida pública, devem ser uma pregação do Evangelho pelo exemplo; toda a nossa existência, todo nosso ser, deve gritar o Evangelho em cima dos telhados; toda nossa pessoa deve respirar a Jesus […] Todo nosso ser deve ser uma pregação viva, um reflexo de Jesus, um perfume de Jesus, algo que grita Jesus, que faz ver Jesus, que brilha como uma imagem de Jesus” [Carlos de FOUCAULD]

ONDE NOS LEVA O ESPÍRITO DE NAZARÉ

  • A pôr nossas vidas encarnadas nas realidades que estamos vivendo.
  • A viver a amizade com Jesus desde a adoração, a contemplação e o encontro com as pessoas (fraternidade, vizinhos, companheiros de trabalho, excluídos…)
  • A converter-nos e ser seres humanos que necessitam dos outros e de Jesus.
  • A estar com as pessoas de uma maneira simples, aprendendo delas, dos mais pequenos e humildes.
  • A ver o mundo com os olhos de Jesus: aquele que não julga, o que escuta, o que perdoa, o que se preocupa que não falte o vinho e o pão, o que multiplica os pães e os peixes de nosso interior em benefício dos outros.
  • A ter uma atitude de denúncia diante das injustiças que sofrem os demais.
  • A não fugir dos problemas, os de fora e os de dentro, e responder como homens e mulheres íntegros.
  • A deixar que Deus nos procure e nos convide ao banquete da alegria.
  • Ao encontro fraterno com pessoas que não acreditam, ou não acreditam como nós, ou têm outra cultura ou outra língua.
  • A não julgar nem viver de preconceitos.

«Deus, o Ser infinito, o Omnipotente, fazendo-se homem, o último dos homens»

COMO VIVER NAZARÉ HOJE

  • Com o estilo de Nazaré: como Jesus viveu a maior parte de sua vida no meio de seus vizinhos. É estar com, não para fazer proselitismos.
  • Em fraternidade.
  • Optando pelos últimos.
  • Sendo conscientes de nossas limitações na medida em que nos for possível.
  • Não fugir de nós mesmos nem dos outros.
  • Encarnar-nos na cultura onde estamos vivendo, mas sem deixar uma atitude crítica quando ela se contrapõe ao Evangelho.

«Estou ansioso por levar finalmente a vida que procuro desde há mais de sete anos, a que vislumbrei, adivinhei, andando pelas ruas que pisaram os pés de nosso Senhor, em Nazaré; pobre artesão perdido no abaixamento e na oscuridão».

QUE DIZ HOJE Á IGREJA A MENSAGEM DO IRMÃO CARLOS

  • Não encaixa no perfil de santo ou santa ao que estamos habituados
  • Abre um espaço de contemplação dentro de um sistema onde tudo está organizado
  • Um novo sentido da missão desde o estar tornando Jesus presente em realidades diversas.
  • Nos põe no lugar onde somos chamados por vocação, não onde gostávamos de estar.
  • Procura o último lugar entre os mais abandonados, nas periferias, onde se vive com meios pobres, sem deslumbrar ninguém.
  • Ajuda a lutar pelos Direitos Humanos dos povos e das pessoas em exclusão, dos que sofrem.

«Para mim, buscar sempre o último dos últimos lugares, para ser tão pequeno como meu Mestre, para caminhar com Ele, passo a passo, como discípulo fiel, para viver com meu Deus que viveu assim toda sua vida e me da este exemplo desde seu nascimento».

COMO O PAPA FRANCISCO RECONHECE AS INTUIÇÕES DELE

  • A alegria que jorra do encontro com Jesus
  • O impulso da missão, que passa pela amizade e a familiaridade com o povo que nos é confiado (referência a “cheirar á ovelha”)
  • O desejo de uma Igreja capaz de “sair ás periferias”, as geográficas e as existenciais
  • A proposta de “uma Igreja para e com os pobres”
  • A importância da misericórdia com todos os feridos pela vida

«Deveis estar impregnados do Evangelho de Jesus até ao ponto de ser capazes, com toda independência, de afirmar frente ás potências e ás ideologias deste mundo os valores que são verdadeiramente indispensáveis para garantir a transcendência e os direitos essenciais da pessoa humana. Não podeis calar aos homens os que Cristo lhes diria se ele pudesse expressar-se por vossa boca e testemunhar por vossas atitudes. Para isso vos escolheu e vos chamou» (René VOILLAUME, “Evangelho, Política e Violência”)

SUA MENSAGEM DE FRATERNIDADE UNIVERSAL

  • Respeitar outras culturas, religiões, formas de vida…
  • Viver no meio do que é difícil e das situações de risco
  • Dar um sentido á vida pessoal e comunitária
  • Saber estar desde os meios pobres e simples junto aos mais necessitados
  • Ser Igreja missionária e samaritana, necessitada do Espírito e de uma renovação (papa Francisco)
  • Deixar-nos ler o coração pelos outros, como lemos coração deles e nos ajudamos mutuamente a crescer em nosso interior
  • Um chamamento social e político para não instalar-nos em ideias fixas
  • Viver o Evangelho desde as coisas e detalhes humanos pequenos, sem fazer que todo o mundo deva entrar onde gostamos ou cremos que é o melhor

Nazaré nos ajuda a conviver sem julgar, a viver em contemplação com nossos espaços pessoais e os espaços dos outros: seu coração, seus sonhos, sua vida. O espírito de Nazaré, assim, insta-nos a revisar a vida contemplando-a, para amar a vida própria e a dos demais como o grande presente amoroso de Deus, quando experimentamos a gratuidade. Só estamos em Nazaré quando não o idealizamos e aceitamos Jesus como vizinho ou companheiro de nosso lar, de nossas horas e de nosso futuro, como copiloto de nosso veículo ou acompanhante em nossas visitas ou nossas reuniões.

Fundamentalmente Nazaré é “ESTAR COM”, como Jesus, como Carlos de FOUCAULD.

aurelio-junio-2016Aurelio SANZ BAEZA,
irmão responsável da fraternidade sacerdotal
Iesus Caritas

(Muito obrigado, irmãzinha Josefa, para a tradução)

José COBO Semana de Teologia PUC Sâo Paulo

Esquema desta apresentação

1. Agradecimentos. O convite do Bizon me obrigou a reviver experiências antigas, a reler livros e escritos antigos, a ler livros que não tinha lido; e a revisar minha vida atual e minha ação pastoral.

2. Ligando com as colocações do Gunther e esclarecendo os meus objetivos.

. Gunther apresentou a vida do Ir. Carlos a partir da 1ª Conversão e a caminhada na busca do último lugar.

. Eu vou fazer uma leitura das experiências importantes da vida de Charles de Foucauld. É para isso, vou acolher a divisão que faz o ir. Antoine Chatelard. Escolhi este autor porque ele se guia em todo momento pela própria palavra do Ir. Carlos, melhor falando pelos seus escritos.

Notas. A primeira nota a destacar é agradecer à cultura francesa e à cultura militar pelo valor que se deu (não sei se hoje continua dando-se) ao ler e escrever. Não havia WahtsApp, graças a Deus. E Charles é um leitor compulsivo de tudo o que for possível e um escritor caprichoso, deparado e que expressa magnificamente os fatos, os dados e os sentimentos. Tenho inveja da educação que recebeu e da sua disposição para escrever. E nossa cultura, eh?

. Dividirei a minha comunicação em quatro pontos, seguindo as quatro etapas da vida de Ir. Carlos; e algumas considerações finais

3. O tempo até a 1ª conversão é dividido em dois períodos diferentes: a infância e adolescência até a primeira comunhão com 14 anos; e o período dos 14 aos 28, quando acontece a conversão.

4. A etapa da infância é avaliada por ele próprio como um tempo feliz, apesar de ter perdido os pais com seis anos de idade. Os pais são muito bem avaliados: o pai, muito doente e afastado procurando cura é admirado; e a mãe é uma santa. Outros dados relevantes: os órfãos vão morar com os avós; o avó é militar; a guerra com a Prusia impõe que mudem de residência e se definam como franceses e contra os prussianos / alemães. A educação recebida, num ambiente católico praticante é muito ‘afetuosa mas frouxa’, talvez possamos traduzir por carinhosa mas permissiva. Eu gostaria mais ver o valor da liberdade no amor. A minha liberdade não termina na liberdade do outro, quando o assunto é amor. Porque a liberdade de Deus arrassaria com a minha caminhada rumo ao amor gratuito. O amor prolonga e potencia a liberdade do outro, para torná-lo capaz de amar como Jesus amou, gratuitamente.

Certamente a marca mais importante deste período é o amor na família, sem os pais biológicos, mas agregando aqui tias e primas. E isso me lembra a vivencia dos povos indígenas do Brasil e de muitas famílias pobres.

Sobressai nessa experiência Marie de Bondy, sua prima, oito anos mais velha que ele. Ela cuida dele, se preocupa dele, não o abandona, responde às suas inquietações, é confidente, orienta ele e oferece a possibilidade de falar com Pe. Huvelin. Ele a define como irmã e mãe. Ele a admira pela sua inteligência e sua virtude, segundo as palavras dele. Curte uma ligação muito profunda, que nunca o abandonará. A influência desta figura será fundamental em todo o seu processo. É uma mulher cristã muito virtuosa e muito virtuosa. Sua religião pode ter o que eu busco. O casamento dela lhe causa muito sofrimento: já não tem a exclusividade do seu amor.

A relação com os amigos desta época é profunda e permanece firme apesar das mudanças na sua vida e na vida dos amigos. Chatelard mostra que é um amor de posse, que se entrega totalmente e exige reciprocidade, quase exclusividade.

-> Experiências marcantes: amor da família e amor dos amigos. Poderiamos falar de absolutos: o absoluto do amor gratuito e o absoluto da amizade?

5. Dos 14/15 anos aos 28, é o período do Abandono das práticas religiosas e da fé em qualquer religião.

Fatos marcantes: saída do círculo familiar; entrada na escola St. Genevieve; expulsão por mau comportamento; morte do avó; estudos na Escola para Oficiais em St. Cyr; conclusão em Seamur, em último lugar; alocados em várias guarnições; expulso do exército por conduta indecorosa e mal exemplo; vai morar com Mimi, em Evian; ‘chamada’ da ação; abandona a Mimi; e se lança em uma exploração; esta dura pouco tempo e ele tem que voltar para a caserna; não aguenta e se demite; parte em uma exploração do Marrocos por própria conta; depois desta expedição, volta a Paris e escreve suas explorações; recebe um prémio da Sociedade Geográfica e se converte em uma autoridade reconhecida; realiza uma série de viagens com motivos desses empreendimentos; quase formaliza um casamento, que certamente não lhe faria bem. A prima Marie de Bondy o ‘salva’ desse casamento; volta a Paris, mas algo mudou na sua vida: a vida dos muçulmanos que visitou e observou o marca profundamente; dai para frente vive como um pobre nómade do deserto; lê muito e, em especial, os filósofos antigos que falam das virtudes.

6. Aprendizagens dessa época, que tem uma profunda influencia na sua vida.

1) A religiosidade profunda de uma mulher tão inteligente. Sua maneira de viver a religião católica naquele momento. Carlos se pergunta será que essa religião não tem valor.

2) A religiosidade profunda dos muçulmanos, tão sofredores, tão abandonados aos absoluto de Deus, tão religiosos, fieis cumpridores. O Deus tem que ser um Absoluto. Porém, ele não se converterá ao Absoluto dos muçulmanos, mas a Jesus Cristo vivo.

3) O exército, que não adorava, lhe dá algumas experiências importantes: a disciplina no agir, o gosto pela ação, as habilidades da cartografia, o aprendizado de línguas, o gosto por explorar e chegar aonde ninguém chegou antes, o gosto pela ação e a organização, o prazer de conhecer e entender os outros povos no mais profundo da sua cultura; o capricho com os outros, soldados; gosto por conhecer territórios e estabelecer amizade com os outros.

4) Na linha mais pessoal, este período significa uma série de perdas que o marcam profundamente: o avó, a proximidade da família, a tenra amizade da prima, a perda da fé. E experimenta o vazio, o tédio, a rejeição dos amigos e colegas. Eu era mais porco que homem.

? Tudo isto está nas suas cartas, nos seus escritos, nas suas meditações.

Uma das coisas que mais me chama a atenção é que o olhar do já Ir. Charles: ele olha para trás sem irá. Me atrevo a dizer que ir. Carlos não fala muito do pecado. Muito pelo contrário, ele afirma “Eu te abandonei, tu nunca me abandonaste”. É magnífica a imagem que dá título à obra de J. Lepetit: “o Parceiro invisível”.

E aqui cabe uma reflexão teológica fundada na afirmação contundente de Paulo: “onde abundou o pecado, sobreabundou a graça; a primazia da graça. E uma sugestão pastoral: vale a pena ressaltar em primeiro lugar e quase único a presença do pecado, do demônio, do mundanismo, da sexualidade desenfreada…. e não falar quase nada da presença do Reino, vivo, operante, mesmo que pareça ‘invisível’? Não será está a ‘alegria do evangelho’ que nos o Francisco atual tanto nos anima a encontrar?

Conversão é um processo constante

Vou fazer algumas considerações muito discutíveis sobre seu processo de conversões. As imagens que temos sobre as conversões acenam sempre para um momento na vida dos ‘santos’, o momento em que formulam sua entrega incondicional a Cristo. Assim falamos da ‘conversão de S. Paulo’ ou da experiência de S. Francisco de Assis, diante do Cristo de S. Damião; e se busca nas Escrituras o exemplo da primeira chamada de Jesus aos Apóstolos. Os papas recentes e os teólogos e pastoralistas falam quase sempre da necessidade do “encontro com Cristo vivo hoje”. E acrescentam dados muito importantes sobre onde encontrar-se com Jesus vivo hoje: na Palavra, acolhida, meditada, estudada e praticada; na Liturgia, especialmente na Eucaristia; e no serviço ao pobres e a todos os sofredores. Não vou questionar essas formulações. Vou tentar pensar sobre a ‘conversão’ do Ir. Carlos. Talvez isso ajude.

7. Parece-me que os autores falam de várias conversões: duas ou três, ao menos. Eu gostaria apresentar uma reflexão sobre os processos de conversões: há várias chamadas de Deus e há várias respostas do ir. Carlos. Até o final da sua vida. Gunther falava de uma conversão diária.

8. A volta de ir. Carlos às práticas religiosas se concretiza na confissão dos pecados, obedecendo ao Pe. Huvelin. Não se estou errado: nunca antes tinha falado com ele. Mesmo que ambos se conhecem através da prima Marie e talvez pelas pregações do padre. A proposta de Huvelin é uma ordem. Sem dúvida é graça de Deus nessa ordem e nessa aceitação. Primazia da graça. Mas eu quero ver a Deus agindo por causas segundas. Por exemplo, será que podemos que a graça de Deus, que a autodoação de Si mesmo, estava trabalhando antes: pelo amor da família, pela doce pressão da prima Marie, pelo seu testemunho de vida, pela religiosidade muçulmana, pela rejeição dos colegas de farda, pelo sentido militar da obediência, nas leituras?

E quero ver a graça de Deus agindo nos fracassos, pela experiência do tédio, do vazio, Isso são as ‘pragas do Egito’ anteriores à libertação! Será que há libertação sem pragas?

9. As formulações sobre a conversão precisam ser contempladas para ver os caminhos de Deus. “Meu Deus, se existis, fazei que eu vos conheça”.

10. A conversão de ir. Carlos não é conversão do pecado para a prática religiosa; mas do tédio, da morte, de ser considerado porco para… Não é uma conversão moral, mesmo que a inclui. Nem da indisciplina para a norma. Para que ou para quem se converte o ir. Carlos? Há várias conversões.

Penso que a primeira conversão está determinada pelo Absoluto de Deus. Formula assim: “Tão logo acreditei que Deus existia, compreendi que não poderia fazer outra coisa senão viver para ele: minha vocação religiosa data do mesmo momento que minha fé. Deus é tão grande! Há tanta diferença entre Deus e tudo o que não é ele!”.

Não é apenas fugir do pecado, mas entregar a vida. A referencia ao filho pródigo acena para a misericórdia do Pai, mais que para o arrependimento filho. O amor é mais forte que qualquer pecado e não exige humilhação. Não é o “eu era bêbado e vivia drogado; encontrei Jesus, xô Satanás”.

Convertei-vos e crede no evangelho. Não é o mesmo que retomar as práticas religiosas ou cumprir a moral sexual.

10. Huvelin o orienta para Jesus. E Jesus se converte para Ir. Carlos num amigo ‘apalpável’, como dizia s. Joao. Ele não reza a um Deus distante, nem a um milagreiro, mas a um amigo. Não inventa o método histórico-crítico, mas as suas meditações são mais existenciais que dogmáticas; mas diálogos que normas; e mais testemunho que pregação.

11. Outras ‘conversões’ ou outras etapas no processo de entrega, ele gosta de falar de ‘abandono’.

Ir. Carlos se converte a Jesus, ao Jesus Bom Pastor e ao Pai do Filho Pródigo. Quero ver aí a influencia de Pe. Huvelin. O Absoluto de Deus, tão admirado nos muçulmanos, se transfere para a ‘imitação’ de Jesus. Bem diferente do ‘sacrificialismo’ do Tomás de Kempis. A imitação de Jesus é por amor. Vejam onde estão as experiências do amor familiar, dos amigos, dos colegas. Amar é imitar. S. João da Cruz formulará uma imagem semelhante: Orar é amar e sofrer com o amado (mas não pelo gosto de sofrer, senão porque o amor não é amado). Agostinho verá isso com um tom de lamento: “ô beleza infinita, quão tarde te conheci”. Ir. Carlos formula melhor: “Logo que te conheci, percebi que só poderia viver para ele”.

12. São constantes as mudanças: nunca muda por falta de disciplina e por não cumprir. Explica a sua saída da Trapa e do exército pelas mesmas razões: “Saí porque tinha entrado – pelos mesmos motivos – não por inconstância, mas por constância na busca de um ideal que eu esperava encontrar lá, e que não encontrei.”

13. A imitação de Cristo o leva na Trapa; depois em Nazaré. Essa busca é de silencio, de semelhança física.

Viver como Jesus… em Nazaré. Mas não deu certo.
Viver como Jesus… servindo a todos: enfermos, esmolas
Viver como Jesus… com os últimos
Viver como Jesus… como irmão ‘universal’
Viver … como Jesus viva em Nazaré – sem roupas especiais, sem privilégios, servindo, sem pregar… trabalhando com as mãos.
Viver e morrer como o grão de trigo.

14. Algumas considerações

1. Valor das experiências das crianças para a catequese e para a pregação. Não é o ensinamento moral e de práticas religiosas, mas o ‘amor familiar’, entranhável, liberador, gratuito… Quanto tem que aprender nossas catequistas da Marie de Bondy. E os pregadores do Huvelin e dos muçulmanos.

2. Predecessor do Vaticano II.

. O Vaticano I nem se menciona. Estou tentado a pensar que a influencia do Vaticano I foi apenas nas formulações e discussões da teologia e da hierarquia. Por baixo dos gostos da Curia e dos Papas, corria a experiência do povo de Deus (o sensus fidei), que foi recolhido pelos teólogos e formulados em propostas mais pastorais e de misericórdia, como queria o Sto. Papa João.

. Em concreto, quero ver a marca da experiência de ir. Carlos em formulações conciliares sobre o ecumenismo, quando se afirma que a Igreja pode até aprender de outras igrejas, confissões e religiões, além do respeito devido aos caminhos de Deus, ou a liberdade de consciência.

. Outra valorização do ir. Carlos, seguindo Huvelin, que engata plenamente com o concilio é a leitura bíblica, como Palavra de Deus e não como simples doutrina ou argumento teológico, mas como diálogo com uma pessoa viva, um amigo.

. Também acho que há uma presença do Ir. Carlos na reflexão sobre a evangelização, sobre a enculturação e sobre os momentos da evangelização. Em concreto, na Evangelii Nuntiandi.

. No Papa Francisco já nem se fala.

jose-coboJosé COBO,
fraternidade do Brasil

PDF: José COBO Semana de Teologia PUC Sâo Paulo

Os sacerdotes proféticos, Jacques GAILLOT

Aurelio, nosso responsável geral, veio encontrar-me em Paris duma maneira muito fraterna. Pediu-me que partilhasse o que gostaria de dizer aos padres das fraternidades. Partilhar convosco sobre o que faz vosso ministério e vossa vida.

Mas, falar dos padres é falar do Homem, daqueles a quem somos enviados. Não é certo que estamos ao serviço de um povo?

Uma noite em que subi ao metro numa hora de ponta, encontrava-me de pé, apertado por todos os lados e na impossibilidade de encontrar um ponto de apoio com a mão. Conforme as sacudidas do metro, repousava sobre uns ou outros. Alguém me identificou e sorria da minha situação precária. Ao descer os dois na mesma estação, não pude deixar de dizer-lhe: “Veja, o que faz aguentar-se em pé um bispo, é a gente!

1 – Começar pelo humano

gaillot-01Seguindo o P. de Foucauld, estamos marcados pela espiritualidade de Nazaré: um estilo de vida simples, pobre, misturados com a vida ordinária das pessoas. Jesus, o homem de Nazaré, viveu uma quantidade de experiências por causa do seu trabalho, das injustiças do seu tempo, os laços tecidos com os pobres, a sua presença ás famílias, compartilhando suas alegrias e seus sofrimentos, sua oração ao Pai na solidão. Seu coração, modelado por todos estes encontros, ardia com o fogo de seu amor pelo seu povo. Esta lenta maturação o preparava para sua missão profética que inaugura de maneira surpreendente na sinagoga de Nazaré. Sua hora tinha chegado.

O Espíritu do Senhor está sobre mim porque o Senhor me consagrou pela unção.
Enviou-me a levar a Boa Notícia aos pobres,
Anunciar aos prisioneiros a sua libertação,
E aos cegos que recuperarão a vista,
A dar a liberdade aos oprimidos,
A anunciar um ano de graça concedido pelo Senhor.” Lc 4, 18-19

Toda a vida pública de Jesus vai consistir em pôr em prática esta pregação de Nazaré. Não é um discurso religioso que fala da Lei: É um discurso que fala somente do ser humano. Não é um discurso sobre Deus, é um discurso sobre o Homem.

Não é um discurso de restauração, é uma grande mensagem de libertação que muda a vida. É um discurso que deixa estupefato.

A espiritualidade de Nazaré não pode passar por alto esta proclamação. É ela que insufla uma dimensão profética a nosso ministério e a nossa vida de padres.

Acontece-me, como a vós, ouvir pessoas que me dizem: “Já não pratico”, ou “há muito tempo que deixei de praticar”. Para essas pessoas, é evidente que se trata da prática religiosa. Mas a prática fundamental do Evangelho é a da justiça e do amor que são devidos ao próximo. Não é a prática religiosa!

No julgamento final, não me perguntarão quantas missas celebrei ou quantos casamentos abençoei. Dirão: “Que fizeste de teu irmão que era estrangeiro, prisioneiro, doente, faminto…?

gaillot-02O essencial é a prática do irmão, a prática da solidariedade. Ninguém está dispensado dela, mesmo quem está aposentado. Como é que há tantos cristãos que não descobriram a importância desta prática da justiça e do amor que são devidos ao próximo?

Na sinagoga de Nazaré Jesus anuncia que veio trazer a Boa Notícia aos pobres. Não diz aos ricos, aos poderosos… Faz a opção dos pobres. Começa por eles. Põe-se do lado dos oprimidos e não dos opressores. Do lado das vítimas e não dos poderosos. Do lado dos humilhados e não do lado dos que os exploram.

Jesus dirigiu-se espontaneamente aos rejeitados, aos esquecidos. Ao fazer esta opção de começar pelos pobres, abre-se a todos. Não rejeita ninguém. É pouco frequente, na sociedade como na nossa Igreja, fazer a opção de começar pelos pobres!

Alegro-me que o Papa Francisco tenha decidido canonizar Monsenhor Romero que é uma figura profética do combate pela justiça.

As mudanças necessárias no seio da Igreja, na sua pastoral, na educação, a vida sacerdotal e religiosa, nos movimentos laicos, que não pudemos realizar em quanto o nosso olhar estava unicamente fixado na Igreja, realizamo-los agora que nos volvemos para os pobres.” “É a partir dos pobres que a Igreja poderá existir para todos, que poderá prestar serviço aos poderosos através de uma pastoral de conversão; mas não ao contrário, como aconteceu tantas vezes.
Discurso na universidade de Lovaina para a recepção do título de Doutor Honoris Causa, 2 de fevereiro de 1980.

Não é nenhuma honra para a Igreja manter boas relações com os poderosos. A honra da Igreja é que os pobres a sintam como própria.”
El Salvador, homilia do 17 de fevereiro de 1980.

2 – Ser uma esperança para os pobres

Há tempos tocou-me o coração uma palavra de Dom Helder Câmara: “Se não sou uma esperança para os pobres, não serei o sacerdote de Jesucristo”.

Léon Schwartzenberg, conhecido médico especializado no cancro, militou já aposentado na associação dos sem documentos da qual faço parte também. Era um amigo. Judio ateu, chamava-me “Meu bispo preferido”. Quando morreu, levaram-no ao cemitério de Montparnasse em Paris, no sector judio. A multidão dos pobres estava presente, invadindo o cemitério. Pessoas sem documentos, sem teto, chegaram, alguns deles de longe, para “Léon” que tanto havia feito por eles e que ficava para eles como um sinal de esperança.

Quando Victor Hugo, o célebre autor dos Miseráveis morreu, a multidão dos pobres levantou-se em todo Paris, dezenas de milhares, para acompanha-lo á sua última morada: o Panteão. Não quis a oração da Igreja mas, no caixão dos pobres que ele tinha pedido, beneficiou do reconhecimento dos “miseráveis” de Paris.

Hoje, lá onde eu vivo, quem leva a esperança dos pobres?

Quando parti de Evreux em 1995, no último sermão na catedral, falei assim á multidão:

Todo cristão, toda comunidade, toda Igreja que não empreende antes de mais, e ante tudo, o caminho do sofrimento dos homens, não tem nenhuma possibilidade de ser ouvida como portadora duma boa notícia. Toda pessoa, toda comunidade, toda Igreja que não se faz antes de mais e ante tudo, fraterna com todos, não poderá encontrar o caminho dos corações, o lugar secreto onde pode ser acolhida esta Boa Notícia.

Jesus foi uma grande esperança para os pobres. Foi até eles com misericórdia, sem excluir ninguém. Os pobres sentiram-se amados por Deus. Os mais deserdados descobriram maravilhados que eram os preferidos de Deus.

No Evangelho, a única atitude que possa libertar alguém, é reconhecer a sua dignidade.

3- Superar as fronteiras:

Aperceberam-se do contágio de muros no mundo? Constroem-nos por todas partes. Muros que separam os povos e lhes impedem de circular. Muros de arame para proteger-se da vinda dos migrantes. Na associação de pessoas indocumentadas, onde existem muitas nacionalidades, temos por lema: “Não mais muros entre os povos, não mais povos entre os muros”.

Não gosto dos muros. Quando vou ás prisões, estou contente de sair de aí para estar fora desses muros que me privam de todo horizonte!

Jesus passou a vida fazendo cair muros: o muro do dinheiro, o muro dos preconceitos e da desconfiança, o muro da indiferença, o muro do esquecimento. E sobre tudo, pela sua morte na cruz, fez cair o muro do ódio que noa separava uns dos outros.

Gosto de ver que Jesus nasceu fora dos muros, e que morreu fora dos muros, Para ver a luz do sol da Páscoa, é preciso sair dos muros.

gaillot-03Superar as fronteiras “em nós” é difícil. É uma grande conversão! Mas, não será ela necessária para chegar a ser um irmão universal?

Podemos ir em missão ao fim do mundo transportando em nós um modelo cultural antigo e inadaptado.

Em Europa, pertencemos a sociedades que já não estão marcadas pelos valores cristãos tradicionais. Por que querer impor a todos valores que só se podem aplicar a um grupo determinado de pessoas? A vinho novo, odres novos.

Quando, na França, autorizaram o matrimonio entre pessoas de mesmo sexo, que confusão! Mesmo da parte dos padres. Nesse reconhecimento público dos casais homossexuais, não se tratava de tolerância mas de direito. É uma mudança cultural considerável.

Hoje, com a mundialização, as religiões estão todas presentes nas grandes cidades. Estão nas escolas, nos hospitais, nas cadeias, os lugares de trabalho… Um padre que va á prisão confiava-me:

Durante trinta anos, fui o único sacerdote. Tudo andava bem. Agora vão um rabino, um imam, um pastor e um evangelista com quem não conseguia entender-me. Já era hora de ter a aposentação!

Isto evoca-me um provérbio africano:

Quando estamos sós vamos mais depressa, quando estamos juntos vamos mais longe!

gaillot-04E se falamos do estatuto social dos padres? Vivo num país onde os padres são cada vez menos e onde as comunidades cristãs estão pedindo.

Não posso deixar de ter um sonho, o sonho que puderam chamar homens ou mulheres de experiência, casados ou não, com um trabalho, uma profissão. E por um tempo determinado. Com o acordo das comunidades e do bispo, lhes seriam impostas as mãos. Não se trataria mais de esperar que se presentem candidatos, mas de tomar a iniciativa do chamado em função das necessidades da igreja local. Aliás, podemos perguntar-nos: aqueles que se apresentam hoje aos seminários, serão os sacerdotes de que precisará a Igreja de amanhã?

O P. de Foucauld era sensível aos acontecimentos. Os acontecimentos o faziam mexer. Homem em caminho e em procura, era capaz de partir a outro lado e de viver de outra maneira. Não se instalava nunca. Para ele, a instalação era uma morte. Por causa de Jesus e do Evangelho dizia-se pronto a ir até ao fim.

Nós estamos entrando num mundo novo. Somos testemunhas do fim de um mundo. Testemunhas também do nascimento de outro mundo que não sabemos ainda o que será. O nosso caminhar revela novos horizontes e abre á novidade.

Em França, quando nos encontramos cada mês fielmente em fraternidade, é comovedor ver-nos chegar carregados de anos, limitados, cansados…

gaillot-05Pensam que estamos já mortos. Mas os que o dizem esqueceram que éramos sementes. Sementes de vida!

O amanhã está por fazer.

+ Jacques Gaillot,
Bispo de Partenia

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