TUDO É GRAÇA. A última carta de Antoine CHATELARD

Tudo é graça! Acolhemos o Natal e o ano novo ao mesmo tempo que o Covid-19. Édouard e Paul-François testaram positivo, Immanuel e eu negativo, ontem à noite, segunda-feira, logo depois da visita de uma sobrinha de Édouard que veio de Paris em 16 e 17 de dezembro. Por isso nos organizamos diante de uma situação nova, sem saber o que virá nos próximos dias.

Obrigado por suas notícias e suas felicitações de fim de ano. Quase todas elas chegam a mim após um silêncio que pode ser explicado pelos acontecimentos deste ano tão especial, que desafiam hábitos e relacionamentos normais. É também uma nova forma de reviver a nossa história ao longo dos anos que deixaram marcas com as celebrações de personagens históricos que não marcaram a minha história enquanto estive longe da França e sem possibilidades de informações, as quais nós temos agora.

Para aqueles que têm dúvidas sobre meus trabalhos e meu novo livro, devo dizer que ele não será lançado antes que a data da canonização seja anunciada, obviamente por razões comerciais. Ele está na editora há mais de um ano, e só falará sobre Charles de Foucauld em Tamanrasset, começando pelo histórico em Asekrem, onde ele permaneceu apenas alguns meses em 1911 e que continua sendo uma fonte de perguntas sobre suas reais motivações. Segue-se um capítulo sobre suas ocupações no ano seguinte em Tamanrasset (1912), típico de sua concepção dos assuntos mundiais. O capítulo 3 se limitará às suas únicas passagens programadas em Marselha em 1913, com um jovem tuaregue, que nunca foi mencionado antes, mesmo nos livros mais recentes. Finalmente, no último capítulo, o único dia de 1/12/1913 em Tamanrasset nos permitirá vê-lo ao vivendo seus vários trabalhos, e tentando seguir sua programação revisada e corrigida.

Esta será apenas uma introdução a outros assuntos que merecem esclarecimentos e ainda podem nos revelar uma forma de santidade nem sempre evidente. Soube há pouco que nosso Papa Francisco não se contentou em concluir sua encíclica Fratelli Tutti falando do Irmão Carlos, mas que, também ofereceu uma biografia desse futuro santo aos membros da Cúria Romana, sem dizer de qual livro se refere. Ao concluir a “Fratelli tutti”, mencionando nosso irmão Carlos, ele me encorajou a continuar meu trabalho para mostrar com mais detalhes como era sua vida fraterna com os homens e mulheres que ele amava, não apenas pelo tempo de um dia, mas todos os dias, durante os últimos anos de sua vida. São centenas de pessoas que vieram ao [lugar] que ele chamou de “a fraternidade” quando ele ainda sonhava em reunir discípulos, mas onde ele esteve sempre sozinho.

Nos primeiros anos, ele apenas anotava os nomes dos destinatários de suas esmolas e seus pequenos presentes em folhas soltas que não se encontram nas edições de cadernos. Não é sem importância porque nos faz conhecer centenas de pessoas que conhecemos, desde os primeiros anos. Por outro lado, nos últimos três anos ele anotou os nomes deles, e percebemos que alguns vieram centenas de vezes. Esses números são importantes para entender a importância dessas visitas recebidas, além daquelas que ele fará entre uns e outros.

Ele, que nos primeiros anos não saía mais de cem metros, já não hesita em viajar quilômetros para visitar os doentes, mas também para visitar a sua nova casa ou para ver seu jardim, enquanto vivia muito ocupado com seu trabalho linguístico, com seus momentos de oração e com uma correspondência muito abundante. Gostaria de mostrar que ele nada fez para convertê-los, mesmo que falasse disso algumas vezes, mas sente-se no dever de trabalhar pela salvação deles como se fosse a sua, amando-os como eles são e como Jesus os ama. É assim que a preocupação pela salvação de todos se exprime nas listas diárias, anotadas em seus cadernos, e também nos seus raros escritos pessoais ou em suas muitas cartas.

Então, aprendo a contar essas pessoas, surpreso ao descobrir que muitas ainda estavam vivas quando cheguei a Tamanrasset e Asekrem em 55 e até muito mais tarde.

Certamente ele ainda tem algo a dizer à nossa Igreja e ao mundo, mesmo que não seja novo. O reconhecimento oficial e universal da sua santidade será um bom conforto para todos aqueles que se referem a ele em todo o mundo e especialmente entre os bispos, sacerdotes e leigos, religiosos e religiosas que se deixaram inspirar por ele e que já faleceram, depois de ter cumprido sua missão no mundo. [Este reconhecimento] será, acima de tudo, um apelo aos jovens que já não se interessavam mais por este testemunho de outro século.

Sim, obrigado a Francisco, nosso Papa, que poderia ter terminado citando novamente Francisco de Assis e que nos falou de Carlos como se ele lhe tivesse um papel importante no futuro da Igreja e do mundo, após a pandemia universal, que atrasa sua canonização. Nunca falamos tanto sobre nosso bem aventurado como recentemente, com a morte do bispo Dom Teissier, em seu dia de festa. O Embaixador da Argélia na França exprimiu-se numa linguagem profética, fazendo dele um santo, e sobretudo um compatriota. A canonização não acrescentará muito a essas cerimônias em Lyon e em Nossa Senhora da África. Muitos viram a Revista “En Dialogue” com nº 14, sobre Carlos de Foucauld e os muçulmanos, divulgada pouco antes desses acontecimentos.

Devo admitir que o envelhecimento não melhora minhas possibilidades de mobilidade, mesmo dentro de casa e apesar das sessões de fisioterapia ao ar livre. Estes compromissos diários me ocupam mais do que o meu trabalho sobre Foucauld, e a perspectiva muito distante de ver o meu livro ser publicado não me encoraja a trabalhar, mesmo que as perguntas de toda a parte, incluindo Tamanrasset e outras partes da Argélia, me obriguem a responder sobre detalhes que não me afastem de sua história.

A todos um feliz Natal e um melhor Ano 2021
Antoine

PDF: Tudo é graça. A última carta de Antoine CHATELARD – PT

Texto 3. FUNDAMENTOS DE UMA ESPIRITUALIDADE INSPIRADA PELO IRMÃO CARLOS DE FOUCAULD

Pe. Nabons-Wendé Honoré SAVADOGO, Burkina

Carlos de Foucauld “empreendeu um caminho de transformação até se sentir irmão de todos os homens e mulheres. [..] Ele orientou o desejo de doação total de sua pessoa a Deus para a identificação com os últimos, os abandonados, nas profundezas do deserto africano”. (Fratelli tutti, 286-287)

A diversidade da família espiritual de Carlos de Foucauld é impressionante. Nela encontramos todos os diferentes estados de vida cristã: fiéis leigos, religiosos e religiosas de vida ativa ou contemplativa, leigos consagrados, sacerdotes e bispos. Todos conseguem obter uma inspiração rica e pertinente na experiência espiritual do Irmão Carlos. Muitas vezes esquecemos os não-cristãos e mesmo aqueles que não são grandes praticantes de uma religião, mas se sentem inspirados pela experiência de Carlos.

O segredo de uma espiritualidade tão profunda e sem fronteiras é, antes de tudo, a fidelidade ao Evangelho. Quanto mais próxima do Evangelho for conduzida a vida de uma pessoa, mais atraente e relevante ela é para todos os cristãos. Além dessa fidelidade ao Evangelho, o Irmão Carlos passou por todos os estados da vida cristã: um fiel leigo que perdeu e recuperou a fé, um monge contemplativo e eremita, um sacerdote “livre” ao mesmo tempo, diocesano e “religioso”, e à sua maneira, um missionário extraordinário. Esta profundidade da experiência espiritual de Carlos de Foucauld implica a existência de elementos básicos comuns a todos os que afirmam fazer parte de sua família espiritual. Tais elementos não devem faltar na vida espiritual de quem deseja seguir Jesus, inspirando-se no modelo foucauldiano.

1. Uma espiritualidade do coração: fazer da religião um amor

Em primeiro lugar, existe amor e misericórdia. O coração, sede e símbolo do amor, é a insígnia do Irmão Carlos, elemento central, distintivo e específico da sua espiritualidade. Desde sua conversão, ele queria que seu coração se tornasse como o de Cristo. Ao longo de sua vida agitada, ele fez tudo que estava ao seu alcance para transformar seu coração e expandir-se de acordo com os limites infinitos do Sagrado Coração de Jesus. Este amor insaciável por Deus e pelos homens é a principal razão de todas as mudanças e transformações inesperadas que aconteceram em sua vida. Em sua oração, ele nunca deixa de pedir a Jesus para trazer seu reino de amor ao mundo. Estamos familiarizados com a Oração do abandono do Irmão Carlos, mas a oração que frequentemente estava em seus lábios era: “COR JESU sacratissimum, adveniat Regnum tuum!” (Sagrado Coração de Jesus, venha o seu reino!). Ele mesmo gostava de dizer que o fundamento da religião e da vida espiritual é o coração e o amor. O que ele escreveu nas regras da congregação que ele queria fundar, ainda é válido para todos aqueles que desejam segui-lo: “Sejamos ardentes de amor como o Coração de Jesus! … Amemos todos os homens” feito à imagem de Deus”, como “este Coração que tanto amou os homens! “… Amemos a Deus, por quem devemos amar os homens, e a quem só devemos amar por si mesmo … Amemos a Deus como o Coração de Jesus o ama, tanto quanto possível!” Sobre este assunto do amor, Carlos estava convencido de que se deve amar sem limites e sem nenhuma restrição. Ele dizia: “O amor é a perfeição; podemos superar em tudo, exceto no amor: no amor nunca podemos ir longe o suficiente…”1.

2. A Eucaristia celebrada, adorada e vivida

Podemos tomar emprestada a consagrada expressão do Concílio Vaticano II para dizer que a Eucaristia é a fonte e o ápice de toda a experiência espiritual de Carlos de Foucauld. Nesta experiência espiritual, a presença da Eucaristia é fundamental, transversal e inevitável a tal ponto que se pode dizer que a sua vida se desenvolveu como uma única contemplação e uma experiência cada vez mais profunda da Eucaristia. A Eucaristia marcou do início ao fim tudo o que ele viveu espiritualmente: sua conversão, sua vida de oração, sua relação com Jesus, a movimentada trajetória de sua vocação, sua pastoral da bondade, sua fraternidade universal, sua visão missionária, sua presença no Saara, cada momento de sua vida, sua morte …

Não se poderia ser discípulo do Irmão Carlos sem um amor cada vez maior por Jesus presente na Eucaristia, celebrada e adorada. Apesar de sua grande devoção eucarística, ele nunca deixou de tomar decisões para amar mais e mais a Eucaristia. Como ele, nós também devemos renovar constantemente o nosso amor pela Eucaristia. Precisamos fazer nossa esta decisão que ele tomou durante um de seus muitos retiros espirituais: “Estar aos pés do Santíssimo Sacramento sempre que a vontade de Deus, isto é, um dever muito certo, não me obrigue a afastar-me dela … […] Nunca ficar sem receber a Sagrada Comunhão, sob qualquer pretexto” 2.

3. A fraternidade universal

O Beato Carlos de Foucauld encontrou na Eucaristia a fonte da fraternidade universal. Tendo percebido claramente que todo ser humano é, de uma forma ou de outra, uma parte, um membro do corpo eucarístico de Cristo, ele deduziu daí a necessidade de amar todos os homens sem distinção: “devemos amar a todos os homens, venerá-los, respeitá-los, incomparavelmente, porque todos são membros de Jesus, fazem parte de Jesus…”. Considerando também que a Eucaristia é o sacramento no qual o amor de Deus se manifesta de maneira suprema, ele pensa que a sua recepção deve tornar-nos ternos, bons e cheios de amor por todos os homens. O Papa Francisco acaba de nos dar o Irmão Carlos como modelo de fraternidade e amizade universal nestes termos: Carlos de Foucauld “fez um caminho de transformação até se sentir irmão de todos os homens e mulheres. [..] Ele orientou o desejo de doação total de sua pessoa a Deus para a identificação com os últimos, os abandonados, nas profundezas do deserto africano” (Fratelli tutti, 286-287). Um desafio inevitável para qualquer discípulo do Irmão Carlos é esta transformação em irmão universal, buscando incessantemente um amor sem fronteiras para se tornar irmão universal de todos os homens e mulheres.

4. Amor pelos mais pobres

Para o Irmão Carlos, a adoração e a ternura que temos pelo Corpo de Cristo na celebração e na adoração eucarística devem ser a mesma veneração e a mesma ternura pelos pobres. Ele tinha o sentimento de que, cada vez que dizíamos “isto é o meu corpo, isto é o meu sangue”, é o mesmo Senhor que disse na parábola do juízo final que tudo aquilo que tivermos feito ao mais pequeno de seus irmãos, é para Ele que nós fizemos. Quando ele permanecia durante longo tempo diante do Santíssimo Sacramento em Beni Abbes, e alguém batia na porta, ele deixava o sacrário para ir ao encontro da pessoa que vinha visitá-lo. É o mesmo Cristo que ele encontrava no Santíssimo Sacramento e nos pobres que o visitavam. Para ficar com os mais pobres, para chegar às almas mais distantes, aceitou enormes sacrifícios: a solidão, a pobreza, a insegurança, a impossibilidade de celebrar a Eucaristia …

5. A sobriedade de vida: penitência, abjeção, pobreza, partilha

Para imitar Jesus em sua descida ao último lugar, por meio da encarnação e do sacrifício da cruz, Carlos de Foucauld levou uma vida de abjeção e intensa mortificação. Embora, às vezes, em sua vida tivesse que amenizar suas mortificações, o irmão Carlos permaneceu um grande asceta ao longo de sua vida. A penitência e a mortificação já não estão mais tão presente nas nossas práticas espirituais e no nosso mundo consumista, mas a figura do Irmão Carlos nos lembra constantemente o convite de Jesus para segui-lo em sua descida à nossa humanidade e em seu sacrifício na Cruz. Como reivindicar a própria escola espiritual sem uma certa dose de penitência, ou pelo menos de sobriedade? Precisamos de muita sobriedade para remar contra a maré de consumismo que tanto desfigura a beleza de nosso mundo e ameaça destruir nossa mãe terra. Uma espiritualidade de penitência e sobriedade constitui um verdadeiro antídoto contra qualquer uso excessivo e abusivo dos bens que a Providência divina coloca à nossa disposição.

6. A contemplação da beleza de Deus na natureza

Já dissemos anteriormente que a vida de Carlos se desenvolveu como uma contínua contemplação da presença de Jesus na Eucaristia e na Sagrada Escritura.

Diariamente, Carlos passava longas horas contemplando a Deus, olhando para Ele com amor e ternura, em oração. Ele foi uma pessoa sempre apaixonada pelo esplendor e pela beleza do infinito amor de Deus. Apesar desta intensa vida de contemplação, Carlos não era indiferente à natureza, também sabia encontrar nela o esplendor da beleza divina. Ele manteve esse senso de beleza na criação por toda sua vida. Ele dizia: “Admiremos as belezas da natureza, todas tão belas e tão boas, pois são obra de Deus. Elas nos levam, imediatamente, a admirar e louvar seu autor. Se a natureza, o homem, a virtude, se a alma é tão bela, então quão bela deve ser a beleza de alguém de quem essas belezas emprestadas são apenas um pálido reflexo! ” (Meditação sobre os Salmos, p. 66 ou: Ch. D. Foucauld, Rencontres à themes, Nouvelle Cité 2016. Capítulo: beleza)

7. Um zelo missionário inalterável

A vida espiritual do irmão Carlos foi marcada por um zelo missionário infalível. Assim que ele descobriu sua vocação de ser missionário do banquete eucarístico para os mais pobres, os mais distantes e os mais famintos – hoje diríamos os mais “periféricos” – não parou de rezar e trabalhar pela missão. Para que o Evangelho seja conhecido e anunciado, ele dizia estar disposto a sacrificar tudo para “ir até o fim do mundo e viver até o último dia …”. Qualquer que seja a forma de nosso estado de vida, podemos seguir autenticamente o irmão Carlos sem querer que o Evangelho e a Eucaristia sejam conhecidos e amados em todo o mundo?

Para terminar como começamos, reafirmamos que, com Carlos de Foucauld, nos deparamos com uma espiritualidade quase inesgotável pela sua ligação direta com o Evangelho. Delineamos apenas alguns dos elementos básicos de sua experiência espiritual. Cabe a cada um questionar-se sobre o lugar e a extensão desses elementos centrais e fundamentais em sua vida espiritual pessoal. Sua presença e seu aprofundamento podem ser uma indicação da autenticidade de nossa fidelidade à experiência espiritual do Irmão Carlos.

Pe. Savadogo Nabons-Wendé Honoré
Ouahigouya (Burkina Faso), dezembro de 2020.

PDF: Text 3, port. BR. Fundamentos de uma esprititualidade inspirada por Charles de Foucaud

Texto 2: Biografia. Preparação à canonização do irmão Carlos

PRINCIPAIS ASPECTOS BIOGRÁFICOS DE CARLOS DE FOUCAULD

Pe. Nabons-Wendé Honoré SAVADOGO, Burkina Faso

Um órfão cercado de afeto

O visconde Charles-Eugène de Foucauld de Pontbriand nasceu em Estrasburgo em 15 de setembro de 1858, filho de François Édouard, inspetor adjunto de Águas e Florestas, e Elisabeth Marie Beaudet de Morlet. Ele tinha apenas uma irmãzinha mais nova, Marie, nascida em 13 de agosto de 1861.A infância de Carlos foi marcada pelo luto. Em 1864, aos 6 anos, ele perdeu sua mãe em um aborto espontâneo em 13 de março, seu pai em 9 de agosto e sua avó paterna em outubro. Carlos e sua irmã foram educados por seu avô, o coronel de Morlet, que envolveu sua infância com caloroso afeto. A infância também foi marcada pelo carinho da família de sua tia paterna, os Moitessiers. Carlos criou uma amizade sólida e profunda especialmente com sua prima Marie Moitessier, que desempenhará um papel determinante em seu crescimento humano e espiritual. Seu avô lhe deu uma boa educação cristã; ele fez a primeira comunhão e recebeu o sacramento da confirmação em 27 de abril de 1872.

Fé perdida e encontrada

Admitido na Escola Secundária de Nancy em 1872 e na Escola Militar de Saint-Cyr em 1976, Carlos perdeu a fé e permaneceu descrente por uns dez anos. Essa fase de sua vida foi marcada por excessos e desvios de comportamento. A morte de seu avô em 3 de fevereiro de 1878 piorou a situação. E Carlos, então, afundou-se numa vida de preguiça, indolência, tédio, indisciplina, mediocridade, festas desregradas e despesas financeiras absurdas. Ele até se apegou a uma mulher, Marie C, e fez dela sua concubina.

Um soldado pouco disciplinado, mas corajoso. Carlos vivia entediado e acabou deixando o exército em 1882 para dedicar-se à exploração do Marrocos. O brilho do sucesso devolveu-lhe a estima e admiração de sua família e da sociedade. Daí em diante ele é habitado por uma busca moral e religiosa. O carinho e a fé, vividos no seu ambiente familiar, sustentam-no em sua busca religiosa cada vez mais intensa: “Meu Deus, se tu existe, faça com que eu te conheça!” Ele encontrou-se com o Padre Huvélin na Igreja de Santo Agostinho em Paris para discutir religião, mas este o convidou a confessar-se e a comungar. Carlos de Foucauld se converteu assim, no final de outubro, e sua relação com Deus será gradativamente cheia de amor, ternura e total abandono em Deus.

Trapista e imitador radical de Jesus de Nazaré

Em 1890, apenas três anos após sua conversão, ele entrou para o mosteiro dos Trapistas em Notre-Dame des Neiges, e, depois no mosteiro de Notre-Dame du Sacré-Coeur, em Akbès (Síria). Porém, muito insatisfeito por não poder encontrar a extrema pobreza de Jesus em Nazaré, e desejando fundar uma congregação para viver plenamente esse ideal, ele deixou a Trapa em janeiro de 1897. Ouvindo os conselhos de seu diretor espiritual, Padre Henry Huvelin, ele foi para a Terra Santa e tornou-se empregado doméstico no mosteiro das irmãs Clarissas de Nazaré, para imitar a vida oculta de Jesus, pobre, despojado de tudo e sentado no último lugar.

A descoberta da sua vocação sacerdotal e missionária

Durante quase três anos, Carlos de Foucauld viveu diariamente longas horas de adoração eucarística, de meditação do Santo Evangelho e leitura de livros teológicos. Mudanças muito importantes aconteceram, então, na percepção de sua vocação e do sacramento da Eucaristia. Ele percebe que, acima de tudo, nada glorifica tanto a Deus aqui na terra como a presença e a oferta da Sagrada Eucaristia. Ele também fica convencido de que um homem nunca imitará Jesus mais perfeitamente do que quando oferece o sacrifício ou administra os sacramentos. Carlos retorna a Notre-Dame des Neiges onde se prepara para o sacerdócio. Os retiros para a ordenação diaconal e sacerdotal incutem nele a convicção de que a Eucaristia é um banquete a ser levado para os mais pobres. Ela, a Eucaristia, exige a vivencia de uma fraternidade universal com todos os homens, em particular com os mais distantes. A partir de agora, a sua vocação de imitar Jesus de Nazaré não é mais viver na Terra Santa, mas de estar no meio das ovelhas mais abandonadas, as do Marrocos.

A abertura evangélica do Saara através da amizade e da bondade

Ordenado sacerdote diocesano em 9 de junho de 1901, no seminário maior de Viviers, Carlos queria ir para o Marrocos e morar em Beni-Abbès, uma encruzilhada na fronteira entre a Argélia e o Marrocos. O Irmão Carlos viveu no Saara uma evangelização de testemunho através da amizade e da bondade. Em Beni-Abbès, começou levando uma vida intensamente contemplativa, mas com grande disponibilidade fraterna a todos aqueles que chegavam em sua Fraternidade: as caravanas, os soldados e oficiais, os simples viajantes, os escravos e especialmente os mais pobres e mais desfavorecidos.

Para iniciar a evangelização dos tuaregues, empreendeu viagens pastorais ao ritmo de missões militares. Ele queria, assim, conquistar a confiança das populações e fazer amizade com elas. Tempos mais tarde, ele foi morar entre os tuaregues, em Tamanrasset, em maio de 1905, de onde fazia viagens pastorais. Ele se encarna na cultura daquele povo ao aprender sua língua e cultura, e ao traduzir o Santo Evangelho e algumas passagens do Antigo Testamento para o tuaregue. Carlos também fez importantes trabalhos linguísticos entre os quais, a realização de uma gramática elementar e dois léxicos tuaregue-francês, francês-tuaregue. Apesar das muitas dificuldades, Carlos não renunciou a sua presença entre os tuaregues, que ele resumiu nos seguintes termos:

É, em primeiro lugar, colocar Jesus no meio deles: Jesus no Santíssimo Sacramento, Jesus descendo todos os dias no Santo Sacrifício; é, também, colocar uma oração no meio deles, a oração da Igreja, por mais miserável que seja aquele que a oferece … é, então, mostrar a estes ignorantes que os cristãos não são aquilo que eles supõem, que nós acreditamos, amamos, esperamos; enfim, é confiar nas almas, na amizade, neste tolerar-se uns aos outros, e, se possível, fazer amigos; para que depois desse primeiro contato, outros possam fazer mais bem por essas pessoas pobres1.

Foi no meio dos tuaregues que Carlos de Foucauld morreu na sexta-feira, 1º de dezembro de 1916, assassinado por senussitas que tinham vindo saquear sua residência e levá-lo como refém. Ele foi beatificado pelo Papa Bento XVI em 13 de novembro de 2005 e canonizado pelo Papa Francisco em… 2021.

ATUALIDADE DA EXPERIÊNCIA ESPIRITUAL DE CARLOS DE FOUCAULD

Uma multidão de “seguidores”

Após 15 anos de ministério pastoral no Saara, Carlos de Foucauld não fez muitos convertidos. Seu desejo ardente de fundar uma congregação religiosa para viver a perfeita imitação de Jesus de Nazaré não teve sucesso. Apesar desse aparente fracasso, a vida e a morte do Irmão Carlos foram fecundadas pelo Senhor. É assim que numerosos discípulos de Cristo se inspiram na experiência espiritual do Irmão Carlos, fundada na Eucaristia celebrada, adorada e vivida, na fraternidade universal, na escuta quotidiana e na meditação do Evangelho, num abandono total e confiante à vontade do Pai, no desejo ardente de levar Cristo aos mais pobres e distantes.

A transformação por meio da Eucaristia

A experiência espiritual de Carlos de Foucauld é como uma luz que o Senhor oferece hoje à sua Igreja, para iluminar a sua caminhada. A intensa devoção eucarística que ele nos comunica é um meio eficaz de viver as nossas celebrações e adorações eucarísticas no frescor da reforma conciliar do Vaticano II. Na escola do irmão Carlos, não se pode participar na Eucaristia sem viver uma profunda comunhão com Cristo, que nos abre a todos os homens, em particular aos mais pobres e distantes. O seu modelo de adoração eucarística convida-nos a escutar a Palavra de Deus para sermos transformados pela imitação das virtudes de Jesus.

Um modelo de evangelização em situação de secularização e fundamentalismo religioso

A atualidade do irmão Carlos se expressa, também, por meio de seu modelo de evangelização. Em meio a um mundo fortemente muçulmano, onde não podia convidar abertamente a crer em Jesus, Carlos de Foucauld quis proclamar seu Mestre vivendo a bondade e a amizade com todos aqueles com os quais se encontrava. Não é desta presença fraterna, amiga e terna que necessitamos para testemunhar Jesus em nosso mundo cada vez mais secularizado? O irmão Carlos viu seus irmãos muçulmanos se radicalizarem: “É a islamização de Hoggar, […] … É um fato muito grave […] em alguns anos, se a influência muçulmana touatiana prevalecer, será uma hostilidade profunda e duradoura…”. A atitude do irmão Carlos em relação ao fundamentalismo religioso, tão difundido em nossos dias, é mais atual do que nunca e inspiradora para nós. Quer estejamos em diálogo ou amizade com os muçulmanos, quer sejamos vítimas do fundamentalismo, é necessário cultivarmos a amizade, o diálogo, o conhecimento lúcido do outro para “compreendê-lo”, a gentileza e a ternura para promover a união dos corações.

Padroeiro das periferias e da fraternidade universal

O Magistério do Papa Francisco nos convida a ir às periferias existenciais dos seres humanos, para fazer de todas as pessoas, especialmente os mais distantes e excluídos, nossos irmãos. Podemos ver o irmão Carlos como o especialista, o padroeiro das “periferias” e da fraternidade universal. Foi isto que ele viveu e ensinou: “devemos amar igualmente todos os seres humanos: ricos e pobres, felizes e infelizes, saudáveis e enfermos, bons e maus, porque todos são membros do Corpo Místico de Jesus (próximo assunto ou distante), e consequentemente membros de Jesus, uma porção dele, isto é, infinitamente veneráveis, amáveis e sagrados” 2.

Um amigo no céu que acompanha e questiona

Carlos de Foucauld é tão atual, porque, acima e tudo, sua presença diante de Deus, na imensa multidão dos santos, é a realização da fraternidade universal que ele tanto procurou. Sua participação na glória e na intercessão de Cristo torna-o tão presente para nós, quotidianamente agindo em nossas vidas e na vida da Igreja. Cada um de nós pode se perguntar: quais frutos a amizade com o Irmão Carlos produziu em minha vida? Há algum aspecto de minha vida que o Irmão Carlos me desafia a mudar?

São Carlos, rogai por nós!

São Carlos de Foucauld, rogai por nós, ajude-nos a abandonarmo-nos totalmente ao Pai, “sem medida, com infinita confiança”, porque Ele é nosso Pai e você, você é nosso amigo. São Carlos de Foucauld, reze por nós!

PDF: Text 2. PORT, Biografia