CHARLES DE FOUCAULD HOJE, Dom Eugênio RIXEN, Semana de Teologia, PUC SÂO PAULO, junho 2016

CHARLES DE FOUCAULD HOJE
Dom Eugênio RIXEN
Bispo de Goiás

PUC SÂO PAULO, junho 2016, Semana de TeologIa

O livro de René Voillaume “Fermento na Massa”, traduzido do francês “Au coeur des masses”1 era leitura obrigatória no seminário na década de 1960.

Muitos padres, religiosos, religiosas, leigos e leigas foram profundamente marcados pela espiritualidade do irmão Carlos. Este queria um retorno à mensagem do Evangelho. Disse ele: “Precisamos reescrever o Evangelho com a própria vida”.

“Toda nossa existência, todo nosso ser deve gritar o Evangelho sobre os telhados: toda nossa pessoa deve respirar Jesus, todas os nossos atos, toda nossa vida devem gritar que somos de Jesus, devem apresentar a imagem da vida evangélica.; todo nosso ser deve ser uma pregação viva, um reflexo, um perfume de Jesus, algo que exclame Jesus, que faça ver Jesus, que brilhe como uma imagem de Jesus”2.

Vários bispos de diferentes continentes, inspirados pela espiritualidade do padre de Foucauld tiveram uma grande influência no Concílio Vaticano II (1962 – 1965). Já no final deste grande evento eclesial, alguns bispos assinaram o Pacto das Catacumbas3. Cinco bispos brasileiros assinaram este documento: João Batista da Mota e Albuquerque, Francisco Austragésilo de Mesquita Filho, José Alberto Lopes de Castro Pinto, Henrique Hector Gollaud Trindade OFM e Antonio Batista Fragoso. Este último participou do mês de Nazaré em Hidrolândia (GO), organizado pelas Fraternidades Sacerdotais “Jesus Caritas”, em janeiro de 1997.

Vários grupos se inspiram na espiritualidade do irmão universal: os Irmãozinhos de Jesus, os Irmãozinhos do Evangelho, as Irmãzinhas de Jesus, as Fraternidades Sacerdotais “Jesus Caritas”, as Fraternidades Seculares Charles de Foucauld, as Fraternidades Missionárias, etc…

Vamos agora apresentar alguns aspectos fundamentais desta espiritualidade.

1- O absoluto de Deus

Após uma adolescência e juventude longe dos valores cristãos que ele tinha aprendido na sua infância, Foucauld, visitando uma igreja em Paris e conversando com o padre Havelin, descobre o absoluto de Deus.

“Tão logo acreditei que havia um Deus, compreendi que não poderia ter outra atitude que não fosse a de viver somente para ele: minha vocação religiosa data do mesmo instante que minha fé: Deus é tão grande! Há uma grande diferença entre Deus e tudo o que não é ele”4

Não basta só conhecer a Deus, é preciso experimentá-lo ou procurar constantemente a sua face: “Meu Deus, meu Deus, eu te procuro! Minha alma tem sede de Ti, minha carne também te deseja, como terra seca sem água!” (Sl 63,2).

Alimentar o desejo de Deus era uma constante na vida do irmão Carlos. Uma grande inquietação morava nele: imitar Jesus de Nazaré. Por isso, após várias experiências em mosteiros trapistas (Nossa Senhora das Neves – França e Abbés – Síria), ele se instalou em Nazaré, como doméstico das clarissas. Mais tarde, fixou-se em Tamanrasset, no sul da Argélia.

Ainda hoje não basta conhecer a Deus, mas é preciso encontrá-Lo, ou, ao menos, procurá-Lo.

2 – A espiritualidade de Nazaré

O padre de Foucauld quer levar uma existência, a mais simples possível, imitando Jesus na sua vida em Nazaré. Escreve “conselhos” aos irmãos e irmãs do Sagrado Coração de Jesus, congregação que ele quer fundar:

“Os irmãos e irmãs do Sagrado Coração de Jesus farão esforços contínuos para se tornarem cada vez mais semelhantes a nosso Senhor Jesus, tomando por modelo sua vida em Nazaré, que oferece exemplos de tudo. A medida da imitação é a do amor – ‘Quem quiser me servir, que me siga’, ‘Eu lhes dei o exemplo, a fim de que, assim como eu fiz, vocês também façam’”5.

A vida de Nazaré consiste em levar uma vida simples e humilde. Mais do que pregar, o irmão Carlos quis testemunhar os valores do Evangelho, a vida escondida de Jesus em Nazaré.

No Pacto das Catacumbas, alguns bispos conciliares se comprometeram com esta espiritualidade.

“Procuraremos viver segundo o modo ordinário da nossa população, no que concerne à habitação, à alimentação, aos meios de locomoção e a tudo o que se segue (cf Mt 5,3; 6,33; 8,20)”6.

3 – A Oração Contemplativa

O irmão Carlos inspirou sua espiritualidade em São Bernardo, Santa Tereza de Ávila e São João da Cruz.

Santa Teresinha escreve: “Para mim, a oração é um impulso do coração, é um simples olhar lançado ao céu, um grito de reconhecimento e amor no meio da provação ou no meio da alegria”7.

Foucauld valorizou muito a oração contemplativa, principalmente diante do Santíssimo:

“Mas todos os dias é preciso dar um certo tempo à contemplação estritamente falada, a esta oração pura que simplesmente é um diálogo familiar, um terno derramamento da alma diante de Deus”8

A oração contemplativa alimenta nossa oração vocal, como é o caso da liturgia comunitária, mas esta última deve também enriquecer nossa oração contemplativa. Os dois modos de orar se fecundam mutuamente.

Faz parte da nossa espiritualidade a adoração eucarística regular e prolongada. A eucaristia está no centro da nossa fé. Contemplando o mistério central da nossa fé, nós aprendemos a imitar cada vez mais aquele que amamos.

4 – A pobreza evangélica

O Papa Francisco insiste que precisamos uma Igreja pobre e com os pobres. Deixemos Charles de Foucauld falar:

“Ó! Meu Senhor Jesus, eis então agora esta divina pobreza! Ó! Como é preciso que seja você quem me instruísse! Você a amou tanto!… Na vossa vida mortal, você fez dela a vossa companheira fiel… Você viveu trinta anos como pobre operário nesta Nazaré que tenho a honra de conhecer….Meu Senhor Jesus, como logo ficaria pobre aquele que amando a você de todo o seu coração e sofreria de ficar mais rico que o seu Bem Amado… Meu Deus, eu não sei se é possível para certas almas de ver-te pobre e ficar voluntariamente ricas, de se encontrar maiores do que o seu mestre…O amor de Jesus, o amor do próximo, o amor da nossa própria salvação, todos os três nos conduzem à pobreza, à pobreza perfeita, completa, semelhante a vós sem uma pedra para por a cabeça”9.

Dizem os Bispos do Pacto das Catacumbas:

“Para sempre renunciaremos à aparência e à realidade da riqueza, especialmente no traje (fazendas ricas, cores berrantes), nas insígnias de matéria preciosa (devem esses insignos ser, com efeito, evangélicos) (Mc 6,9; Mt 10,9s; At 3,6). Nem ouro, nem prata”10.

5 – A fraternidade

Irmão Carlos tinha uma profunda convicção de que todos somos irmãos, o mesmo sangue, a mesma vida divina circula em todos os seres humanos.

“Quero habituar todos os habitantes, cristãos, muçulmanos, judeus e idólatras, a ver-me como seu irmão universal. Eles começam a chamar a casa de “fraternidade” e isso me dá grande satisfação.
Somos todos filhos do Altíssimo! Todos… o mais pobre, o mais repugnante, um recém-nascido, um velho decrépito, o ser humano menos inteligente, o mais abjeto, um idiota, um pecador, o maior pecador, o mais ignorante, o último dos últimos, aquele que mais repugna no aspecto físico e moral é um filho de Deus, um filho do Altíssimo”11.

As várias fraternidades inspiradas do beato Carlos de Foucauld procuram viver esta vida fraterna através de encontros mensais de oração, de estudo e de revisão de vida. Seguindo o método “Ver-Julga-Agir”, inspirado da Ação Católica, os membros partilham suas vidas à luz da Palavra de Deus e procuram pistas de ação para transformarem-se a si mesmos e a sociedade na qual vivem.

Motivados pela fraternidade universal, alguns membros da fraternidade se engajam nas pastorais de fronteira, como a Pastoral Carcerária, a Pastoral da Terra, da Moradia, Indígena ou ainda partem em missão para lugares mais desfiadores no Brasil ou no mundo.

Um belo exemplo disso são as irmãzinhas de Jesus. Quando sua fundadora, irmã Madalena de Jesus, visitou os índios tapirapés no Mato Grosso, ela escreveu:

“A casa das irmãzinhas tornou-se a casa de todos. Fico feliz com essa confiança que inspiraram. Elas realmente fazem parte da tribo e se adaptaram totalmente. Quando os homens vão caçar ou pescar, elas recebem sua porção como qualquer outra família… Foi-lhes atribuído um lote de terreno que agora elas mesmas cultivam, mas podem servir-se em outros lotes. Em troca, estão disponíveis para todos, de dia e de noite, para cuidar deles. Na verdade, é essa ajuda mútua que possibilita, só ela, manterem-se num plano de igualdade e de amizade”12.

6 – O último lugar

Num mundo da competitividade, onde cada um quer ser mais que o outro, Jesus propõe a humildade e o serviço. Ele disse: “Quem se exalta será humilhado, que se humilha será exaltado”( Lc 18,14) e dá o exemplo quando lava os pés de seus discípulos (Jo 13,1-13). O maior é aquele que serve (Lc 9,46-48).

Escreve irmãzinha Madalena de Jesus:

“Há uma vontade de Deus muito clara de querer fazer que partilhemos da vida dos mais pobres, inclusive dos mais miseráveis…
Precisamos ir em busca não apenas do pobre que respeitamos, mas também do condenado, do culpado que se esconde e tem vergonha, perguntando-se quem irá ainda querer bem e amá-lo por amizade. E é por isso que tentamos agora nos aproximar dos detentos, na angústia moral de suas prisões”13.

7 – O diálogo ecumênico e inter-religioso

O testemunho religioso dos muçulmanos levam o irmão Carlos a se questionar sobre a sua própria fé:

“Confesso: o islamismo produziu em mim uma profunda mudança… a visão desta fé, dessas almas vivendo na contínua presença de Deus, fez-me entrever algo de maior e de mais verdadeiro do que minhas ocupações mundanas”14

Esta fé na transcendência de Deus já impressionou de Foucauld quando ainda jovem explorou o Marrocos. Os últimos 15 anos de sua vida, ele viveu na Argélia no meio dos muçulmanos, simplesmente testemunhando a sua fé.

“Minha missão deve ser o apostolado da bondade. A meu ver, deverão dizer: ‘já que este homem é tão bom, também sua religião deve ser boa!’ Se alguém me perguntar por que eu sou manso e bom, deverei responder: ‘Porque eu sou o servidor de um outro que é muito melhor do que eu. Se você soubesse como é bom o meu Mestre Jesus!’ Quero ser tão bom que possam dizer de mim: ‘Se o servidor é assim como não será o Mestre!’”15

8 – O deserto

Sabemos que na Bíblia, o deserto é o lugar da experiência de Deus. Moisés encontrou Deus na solidão do deserto através da sarça ardente (Ex 3,1-10). Elias fez a experiência de Deus no monte Horeb através de uma brisa ligeira (1Rs 19,1-8). O próprio Jesus, antes de iniciar a sua missão, ficou 40 dias no deserto, orando e jejuando (Mt 4,1-11).

Em 1898, o irmão Carlos escreve ao padre Jerônimo:

“É preciso passar pelo deserto e aí permanecer por algum tempo para receber a graça de Deus: é nele que nos despojamos, que afastamos de nós o que não é Deus e que esvaziamos completamente a pequena morada de nossa alma para deixar todo o lugar exclusivamente para Deus”16

O deserto é o lugar da experiência de Deus, mas também do encontro consigo mesmo e das suas sombras. É o lugar das tentações. Só vive bem quem é amante do silêncio!

Algumas considerações finais

A espiritualidade e o estilo de vida do beato Charles de Foucauld continuam bem atuais e são capazes de sustentar a mística de padres, religiosos/as e leigos/as nos dias atuais.

Dom Walter Kasper, cardeal alemão e presidente emérito do Pontifício Conselho para a Promoção da Unidade dos Cristãos faz as seguintes observações para a Igreja alemã:

“Apesar de todos os esforços pastorais realizados, as igrejas estão cada vez mais vazias no domingo e a sociedade mais descristianizada. Muitos têm a impressão de pregar para ouvidos surdos. Nessa situação difícil, o exemplo de Charles de Foucauld pode ser de grandíssima ajuda para muitos sacerdotes. Nós, cristãos, também somos filhos de nosso tempo; queremos planejar, fazer, organizar, controlar os resultados… Charles de Foucauld nos sugere uma abordagem diferente: imitar e viver a vida de Jesus em Nazaré”17

O mesmo cardeal convida a Igreja a ser mais misericordiosa para testemunhar melhor o Evangelho de Jesus Cristo:

“Também neste sentido é muito instrutiva a história da salvação. O publicano Levi converteu-se no evangelista São Mateus, e Saulo passou a ser São Paulo. Também alguns santos, como Carlos de Foucauld, começaram por ser uns fracassados; nos dias de hoje, em conformidade com os critérios vigentes para a nomeação de bispos, Santo Agostinho, por exemplo, se fosse considerada a sua vida passada, não chegaria nem a acólito”18

Concluindo podemos afirmar que as grandes intuições do beato Charles de Foucauld continuam bem atuais para alimentar uma verdadeira espiritualidade do seguimento de Jesus.

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fraternidade do Brasil

PDF: CHARLES DE FOUCAULD hoje, Eugênio RIXEN, PUC SÂO PAOLO, junho2016

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