Aurelio, nosso responsável geral, veio encontrar-me em Paris duma maneira muito fraterna. Pediu-me que partilhasse o que gostaria de dizer aos padres das fraternidades. Partilhar convosco sobre o que faz vosso ministério e vossa vida.
Mas, falar dos padres é falar do Homem, daqueles a quem somos enviados. Não é certo que estamos ao serviço de um povo?
Uma noite em que subi ao metro numa hora de ponta, encontrava-me de pé, apertado por todos os lados e na impossibilidade de encontrar um ponto de apoio com a mão. Conforme as sacudidas do metro, repousava sobre uns ou outros. Alguém me identificou e sorria da minha situação precária. Ao descer os dois na mesma estação, não pude deixar de dizer-lhe: “Veja, o que faz aguentar-se em pé um bispo, é a gente!”
1 – Começar pelo humano
Seguindo o P. de Foucauld, estamos marcados pela espiritualidade de Nazaré: um estilo de vida simples, pobre, misturados com a vida ordinária das pessoas. Jesus, o homem de Nazaré, viveu uma quantidade de experiências por causa do seu trabalho, das injustiças do seu tempo, os laços tecidos com os pobres, a sua presença ás famílias, compartilhando suas alegrias e seus sofrimentos, sua oração ao Pai na solidão. Seu coração, modelado por todos estes encontros, ardia com o fogo de seu amor pelo seu povo. Esta lenta maturação o preparava para sua missão profética que inaugura de maneira surpreendente na sinagoga de Nazaré. Sua hora tinha chegado.
“O Espíritu do Senhor está sobre mim porque o Senhor me consagrou pela unção.
Enviou-me a levar a Boa Notícia aos pobres,
Anunciar aos prisioneiros a sua libertação,
E aos cegos que recuperarão a vista,
A dar a liberdade aos oprimidos,
A anunciar um ano de graça concedido pelo Senhor.” Lc 4, 18-19
Toda a vida pública de Jesus vai consistir em pôr em prática esta pregação de Nazaré. Não é um discurso religioso que fala da Lei: É um discurso que fala somente do ser humano. Não é um discurso sobre Deus, é um discurso sobre o Homem.
Não é um discurso de restauração, é uma grande mensagem de libertação que muda a vida. É um discurso que deixa estupefato.
A espiritualidade de Nazaré não pode passar por alto esta proclamação. É ela que insufla uma dimensão profética a nosso ministério e a nossa vida de padres.
Acontece-me, como a vós, ouvir pessoas que me dizem: “Já não pratico”, ou “há muito tempo que deixei de praticar”. Para essas pessoas, é evidente que se trata da prática religiosa. Mas a prática fundamental do Evangelho é a da justiça e do amor que são devidos ao próximo. Não é a prática religiosa!
No julgamento final, não me perguntarão quantas missas celebrei ou quantos casamentos abençoei. Dirão: “Que fizeste de teu irmão que era estrangeiro, prisioneiro, doente, faminto…?”
O essencial é a prática do irmão, a prática da solidariedade. Ninguém está dispensado dela, mesmo quem está aposentado. Como é que há tantos cristãos que não descobriram a importância desta prática da justiça e do amor que são devidos ao próximo?
Na sinagoga de Nazaré Jesus anuncia que veio trazer a Boa Notícia aos pobres. Não diz aos ricos, aos poderosos… Faz a opção dos pobres. Começa por eles. Põe-se do lado dos oprimidos e não dos opressores. Do lado das vítimas e não dos poderosos. Do lado dos humilhados e não do lado dos que os exploram.
Jesus dirigiu-se espontaneamente aos rejeitados, aos esquecidos. Ao fazer esta opção de começar pelos pobres, abre-se a todos. Não rejeita ninguém. É pouco frequente, na sociedade como na nossa Igreja, fazer a opção de começar pelos pobres!
Alegro-me que o Papa Francisco tenha decidido canonizar Monsenhor Romero que é uma figura profética do combate pela justiça.
“As mudanças necessárias no seio da Igreja, na sua pastoral, na educação, a vida sacerdotal e religiosa, nos movimentos laicos, que não pudemos realizar em quanto o nosso olhar estava unicamente fixado na Igreja, realizamo-los agora que nos volvemos para os pobres.” “É a partir dos pobres que a Igreja poderá existir para todos, que poderá prestar serviço aos poderosos através de uma pastoral de conversão; mas não ao contrário, como aconteceu tantas vezes.”
Discurso na universidade de Lovaina para a recepção do título de Doutor Honoris Causa, 2 de fevereiro de 1980.
“Não é nenhuma honra para a Igreja manter boas relações com os poderosos. A honra da Igreja é que os pobres a sintam como própria.”
El Salvador, homilia do 17 de fevereiro de 1980.
2 – Ser uma esperança para os pobres
Há tempos tocou-me o coração uma palavra de Dom Helder Câmara: “Se não sou uma esperança para os pobres, não serei o sacerdote de Jesucristo”.
Léon Schwartzenberg, conhecido médico especializado no cancro, militou já aposentado na associação dos sem documentos da qual faço parte também. Era um amigo. Judio ateu, chamava-me “Meu bispo preferido”. Quando morreu, levaram-no ao cemitério de Montparnasse em Paris, no sector judio. A multidão dos pobres estava presente, invadindo o cemitério. Pessoas sem documentos, sem teto, chegaram, alguns deles de longe, para “Léon” que tanto havia feito por eles e que ficava para eles como um sinal de esperança.
Quando Victor Hugo, o célebre autor dos Miseráveis morreu, a multidão dos pobres levantou-se em todo Paris, dezenas de milhares, para acompanha-lo á sua última morada: o Panteão. Não quis a oração da Igreja mas, no caixão dos pobres que ele tinha pedido, beneficiou do reconhecimento dos “miseráveis” de Paris.
Hoje, lá onde eu vivo, quem leva a esperança dos pobres?
Quando parti de Evreux em 1995, no último sermão na catedral, falei assim á multidão:
“Todo cristão, toda comunidade, toda Igreja que não empreende antes de mais, e ante tudo, o caminho do sofrimento dos homens, não tem nenhuma possibilidade de ser ouvida como portadora duma boa notícia. Toda pessoa, toda comunidade, toda Igreja que não se faz antes de mais e ante tudo, fraterna com todos, não poderá encontrar o caminho dos corações, o lugar secreto onde pode ser acolhida esta Boa Notícia.”
Jesus foi uma grande esperança para os pobres. Foi até eles com misericórdia, sem excluir ninguém. Os pobres sentiram-se amados por Deus. Os mais deserdados descobriram maravilhados que eram os preferidos de Deus.
No Evangelho, a única atitude que possa libertar alguém, é reconhecer a sua dignidade.
3- Superar as fronteiras:
Aperceberam-se do contágio de muros no mundo? Constroem-nos por todas partes. Muros que separam os povos e lhes impedem de circular. Muros de arame para proteger-se da vinda dos migrantes. Na associação de pessoas indocumentadas, onde existem muitas nacionalidades, temos por lema: “Não mais muros entre os povos, não mais povos entre os muros”.
Não gosto dos muros. Quando vou ás prisões, estou contente de sair de aí para estar fora desses muros que me privam de todo horizonte!
Jesus passou a vida fazendo cair muros: o muro do dinheiro, o muro dos preconceitos e da desconfiança, o muro da indiferença, o muro do esquecimento. E sobre tudo, pela sua morte na cruz, fez cair o muro do ódio que noa separava uns dos outros.
Gosto de ver que Jesus nasceu fora dos muros, e que morreu fora dos muros, Para ver a luz do sol da Páscoa, é preciso sair dos muros.
Superar as fronteiras “em nós” é difícil. É uma grande conversão! Mas, não será ela necessária para chegar a ser um irmão universal?
Podemos ir em missão ao fim do mundo transportando em nós um modelo cultural antigo e inadaptado.
Em Europa, pertencemos a sociedades que já não estão marcadas pelos valores cristãos tradicionais. Por que querer impor a todos valores que só se podem aplicar a um grupo determinado de pessoas? A vinho novo, odres novos.
Quando, na França, autorizaram o matrimonio entre pessoas de mesmo sexo, que confusão! Mesmo da parte dos padres. Nesse reconhecimento público dos casais homossexuais, não se tratava de tolerância mas de direito. É uma mudança cultural considerável.
Hoje, com a mundialização, as religiões estão todas presentes nas grandes cidades. Estão nas escolas, nos hospitais, nas cadeias, os lugares de trabalho… Um padre que va á prisão confiava-me:
“Durante trinta anos, fui o único sacerdote. Tudo andava bem. Agora vão um rabino, um imam, um pastor e um evangelista com quem não conseguia entender-me. Já era hora de ter a aposentação!”
Isto evoca-me um provérbio africano:
“Quando estamos sós vamos mais depressa, quando estamos juntos vamos mais longe!”
E se falamos do estatuto social dos padres? Vivo num país onde os padres são cada vez menos e onde as comunidades cristãs estão pedindo.
Não posso deixar de ter um sonho, o sonho que puderam chamar homens ou mulheres de experiência, casados ou não, com um trabalho, uma profissão. E por um tempo determinado. Com o acordo das comunidades e do bispo, lhes seriam impostas as mãos. Não se trataria mais de esperar que se presentem candidatos, mas de tomar a iniciativa do chamado em função das necessidades da igreja local. Aliás, podemos perguntar-nos: aqueles que se apresentam hoje aos seminários, serão os sacerdotes de que precisará a Igreja de amanhã?
O P. de Foucauld era sensível aos acontecimentos. Os acontecimentos o faziam mexer. Homem em caminho e em procura, era capaz de partir a outro lado e de viver de outra maneira. Não se instalava nunca. Para ele, a instalação era uma morte. Por causa de Jesus e do Evangelho dizia-se pronto a ir até ao fim.
Nós estamos entrando num mundo novo. Somos testemunhas do fim de um mundo. Testemunhas também do nascimento de outro mundo que não sabemos ainda o que será. O nosso caminhar revela novos horizontes e abre á novidade.
Em França, quando nos encontramos cada mês fielmente em fraternidade, é comovedor ver-nos chegar carregados de anos, limitados, cansados…
Pensam que estamos já mortos. Mas os que o dizem esqueceram que éramos sementes. Sementes de vida!
O amanhã está por fazer.
+ Jacques Gaillot,
Bispo de Partenia